Título: Pacto social e fiscal na América Latina
Autor: Lora, Eduardo e Santiso, Javier
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2006, Opinião, p. A15

Os governos latino-americanos destinam poucos recursos aos gastos que mais beneficiam as grandes massas da população. México e Peru dedicam apenas 6% do PIB aos gastos públicos com Educação e Saúde, porém eles dificilmente poderiam ser maiores em países que arrecadam menos de 15 pontos percentuais do PIB em impostos e tributos, incluindo a Previdência Social. No outro extremo, o Brasil arrecada mais de 36% do PIB, mas é igualmente pouco expansivo com o gasto em Educação e Saúde.

Neste contexto, surpreende que a opinião pública debata acaloradamente como é regressivo o imposto sobre o consumo (IVA), ou outros impostos, e que, por outro lado, preste tão pouca atenção a quem beneficia o gasto público. O grande pecado na América Latina não está apenas no fato de os impostos serem pouco progressivos, como acredita a maioria das pessoas, mas também que se arrecade tão pouco, e que, quando se consegue elevar a arrecadação, como no Brasil, uma grande parte dela beneficiará os mais ricos.

Uma boa dotação dos recursos tributários pode ter um grande efeito distributivo. Consideremos um país como a Colômbia, onde os 40% mais pobres recebem apenas 10% da renda. Bastaria uma taxa de imposto uniforme de 5% para aumentar em 43% a renda dos mais pobres, se os impostos se destinassem integralmente para beneficiar esses 40% mais pobres. No resultado final, faria pouca diferença se os pobres ficaram isentos do imposto. Por outro lado, faz uma grande diferença a forma como os recursos são utilizados. Se o gasto beneficiar a todos igualmente, os rendimentos aumentarão em apenas 14%. E se os 40% da população mais pobre forem excluídos do gasto social, então seus rendimentos cairão à razão da taxa de imposto, ou seja, em 5%.

Um exemplo de um gasto social muito bem focalizado são as transferências condicionadas feitas às famílias pobres, na condição de enviarem os seus filhos às escolas e de realizarem exames de saúde preventivos de forma regular. O "Famílias em Acción" na Colômbia, "Oportunidades" no México e "Bolsa Família" no Brasil são desta natureza. A Saúde Pública é um gasto social que tende a beneficiar todas categorias de renda de forma mais ou menos proporcional, enquanto o gasto em Educação tende a ser progressivo nos níveis básicos, mas regressivo nos níveis avançados.

As pensões são o gasto "social" mais regressivo: na Colômbia, mantendo esse exemplo, 80% do gasto com pensões vai para os 20% mais ricos da população e só 2% para os 40% mais pobres. Com um déficit do sistema público previdenciário com projeção de crescimento ano após ano, até superar os 5% do PIB, as arrecadações adicionais de impostos tenderão a ter um efeito crescentemente regressivo. Isto já ocorreu em outros países. No Brasil, é um dos motivos para a elevada carga tributária.

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Embora os sistemas latino-americanos de pensões tenham sido inspirados nos europeus, na Europa eles não se tornaram privilégio dos ricos, porque desde o começo afiliaram todos os tipos de trabalhadores e porque estabeleceram pensões máximas muito modestas. Quando os sistemas se tornaram deficitários, as sociedades européias aceitaram a elevação dos impostos com relativa facilidade. Na América Latina é difícil resolver esse problema das pensões aumentando os impostos, e muito menos os de base ampla, como o IVA, pois isso implica uma redistribuição perversa. É igualmente difícil, porém, que os beneficiários atuais e futuros dos sistemas de pensões públicas aceitem um corte dos seus benefícios. Para defender seus interesses, contam com mais apoio político e com mais mecanismos de oposição efetiva do que todos os que estão fora destes sistemas.

Nesta luta distributiva, a tendência é postergar o ajuste fiscal, gerando um risco de instabilidade macroeconômica que prejudica o investimento e o crescimento. As modestas taxas de investimento e crescimento da Bolívia, Brasil e Uruguai são em parte produto do problema previdenciário. Se um pacto social conseguir clarear a situação fiscal e acelerar o crescimento, porém, a sociedade poderá aceitar o ônus do déficit previdenciário. Este é o caso do Chile, onde existe um déficit de 5% do PIB do antigo sistema previdenciário, que a sociedade aceita pagar porque a renda per capita cresce a taxas anuais de 4%, porque o sistema tributário é considerado justo e transparente - e não como um obstáculo ao investimento - e porque foi feito um grande esforço para concentrar nos pobres o gasto social na Educação, Saúde e Proteção Social.

Em 2006, a pauta da região foi muito carregada do ponto de vista político. Em alguns países foram mantidos os rumos econômicos continuístas e pragmáticos, como no Chile, Brasil, Colômbia e México. Em outros, as rupturas se fizeram mais evidentes com a chegada ao poder de novos líderes, seja na Bolívia ou no Equador. Em todos, porém, os resultados apontam na direção de uma demanda crescente e urgente: crescimento com desenvolvimento. Sabemos que o crescimento é necessário para fomentar o desenvolvimento. Mas sabemos também que pode haver crescimento sem desenvolvimento. Em 2007, a tarefa de todos os governos, continuístas ou de rupturas, será a de encontrar um pacto fiscal que se assente em um pacto social viável. A tarefa não é simples: no passado houve muitas tentativas de promover reformas fiscais e sociais. Esta tarefa, no entanto, está e continuará no centro dos desafios a enfrentar em 2007.

Eduardo Lora é membro do Departamento de Pesquisa do BID.

Javier Santiso é economista-chefe e diretor adjunto do Centro de Desenvolvimento da OCDE, Paris e França. Antes foi economista-chefe para a América latina de BBVA. Sua última publicação é: "Latin America's Political Economy of the Possible: Beyond Good Revolutionaries and Free Marketeers", Cambridge, Mass., MIT Press, 2006.