Título: Consumo deve ser base para desenvolvimento
Autor: Leo, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2006, Especial, p. A16

Fazer o Brasil crescer é uma coisa, garantir o desenvolvimento do país é outra, da qual o crescimento é apenas uma parte, alerta Ricardo Bielschowsky, economista da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) e professor licenciado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor do clássico "Pensamento Econômico Brasileiro, o Ciclo Ideológico do Desenvolvimentismo 1930-1964". Especialista em história do pensamento econômico, Bielschowsky assessorou a elaboração do Plano Plurianual (PPA) 2004-2007. O plano, pouco consultado na prática pelos ministérios, traz discussões que voltaram no atual debate sobre os rumos da política econômica no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.

A política de desenvolvimento no país deve ser baseada no consumo de massas, defende Bielschowsky. Ele detalha, nesta entrevista, idéias esboçadas em um artigo elaborado com outro economista também da Cepal, Carlos Mussi, sobre o debate a respeito das políticas desenvolvimentistas no país. "A discussão sobre estratégias de desenvolvimento e sobre investimento costuma ser prejudicada pelo quase monopólio das atenções exercido por inflação e crescimento no debate brasileiro", critica o economista.

Ressalvando que expõe opiniões pessoais e não o pensamento da Cepal, ele falou ao Valor sobre a necessidade de evitar recuos na política de crescimento, mesmo diante de uma eventual desvalorização do câmbio e comentou os cuidados a tomar para que o esforço para o crescimento da economia resulte, de fato, em uma política de desenvolvimento sustentado.

Valor: O sr. identifica cinco estratégias de desenvolvimento no debate brasileiro sobre o assunto. Quais são elas?

Ricardo Bielschowsky: Três são desenvolvimentistas, pressupõem a interação do Estado com o mercado para aumentar o investimento e orientar o desenvolvimento. Uma delas enfatiza a dinâmica de consumo de massa, outra tem o foco na inovação e competitividade e a terceira prioriza a integração territorial e a competitividade. Uma quarta estratégia, a "reformista", só considera possível aumentar investimento e crescer se forem realizadas reformas (trabalhista, previdenciária, tributária, judiciária etc) que fortaleçam os mecanismos de mercado, inclusive pela redução do tamanho do Estado. A quinta estratégia é centrada em fórmulas de redistribuição de renda, omite investimento ou crescimento e tem adeptos tanto de inclinação desenvolvimentista como de orientação neoliberal.

Valor: Por que o sr. defende a estratégia baseada no consumo de massas?

Bielschowsky: Colaborei na elaboração em 2003 do PPA 2004-2007, que tem toda uma seção introdutória apresentando a estratégia. É uma modalidade viável porque inscrita na lógica de funcionamento da economia brasileira, só espera a retomada do crescimento para se afirmar.

Valor: Como funcionaria?

Bielschowsky: Foi a orientação seguida pelos países desenvolvidos, de mercado interno amplo, no pós-guerra. É baseada em políticas de crescimento e de investimento (fixo e em inovação) e em políticas sociais. Integra crescimento à distribuição de renda. Cria um círculo virtuoso, com expansão do investimento, da produtividade e da competitividade, de um lado, e aumento da renda e do consumo das famílias trabalhadoras, de outro.

Valor: Como se cria isso?

Bielschowsky: A escala potencial do mercado brasileiro permite essa estratégia. É simples: o crescimento e o investimento aumentam a produtividade e a competitividade, por escala e por progresso técnico, e isso eleva o poder aquisitivo das famílias, pelo aumento salarial, o financiamento público às políticas sociais e a queda no preço dos bens de consumo. A maior demanda por bens de consumo de massa estimula o crescimento, o investimento e, de novo, a produtividade. O investimento e o consumo dos 60% mais pobres podem crescer mais do que o PIB, basta que o consumo dos 20% de maiores rendas cresça menos. Além das virtudes intrínsecas, essa proposição faz o que nenhuma das demais consegue: absorver os melhores elementos de cada uma das outras quatro.

Valor: Como?

Bielschowsky: É uma espécie de guarda-chuva para as outras estratégias. Ela enfatiza as políticas tecnológicas e de competitividade, incorpora com facilidade a importante dimensão territorial do desenvolvimento nacional e não descarta a necessidade reformas graduais. Vai além do argumento distributivista puro, porque assevera que a melhoria na distribuição de renda permite ganhos de escala na produção e expande a produtividade. Integra investimento e crescimento à redistribuição de renda e consumo popular, num modelo único.

Valor: Como se relacionam essas estratégias e o debate sobre macroeconomia e controle de inflação?

Bielschowsky: Quando se fala em políticas de controle do nível de atividade e de inflação, os neoliberais tendem a se afinar com a ortodoxia monetarista e os desenvolvimentistas com a heterodoxia keynesiana. Para os ortodoxos, o produto potencial brasileiro é baixo e é baixa a capacidade para crescer, por causa do estoque de capital existente e dos níveis atuais de investimento. Segundo essa visão, dá para crescer, no máximo, 3% a 3,5% nos próximos anos, sem afetar as metas de inflação. Os ortodoxos dizem que os juros reais resistem à queda por conta do tamanho da dívida pública e de expectativas sobre as contas públicas e porque o clima investidor é contaminado pela desconfiança com relação aos problemas fiscais, o excesso de impostos e o tamanho do Estado.

Valor: E os heterodoxos?

Bielschowsky: Os economistas heterodoxos acreditam que o Brasil está preparado para crescer a 5% ao ano ou mais, porque a produtividade e os investimentos tendem a se expandir com o aumento do PIB e porque o produto potencial vem sendo subestimado nos modelos ortodoxos, como o que balizou a política monetária nos últimos anos. Isso é música para os ouvidos dos desenvolvimentistas, porque eles consideram que a ampliação do investimento e o progresso técnico são altamente dependentes do crescimento.

Valor: O que os heterodoxos sugerem para crescer mais, sem perder o controle sobre a inflação?

Bielschowsky: Baixar os juros, permitir a desvalorização do câmbio e continuar reduzindo a vulnerabilidade externa. O comportamento externo recente deixou-os mais otimistas quanto à possibilidade de queda sustentada dos juros. Varia um pouco entre eles a posição sobre a conveniência ou o tamanho do ajuste fiscal e sobre o controle de fluxos de capitais de curto prazo. Para heterodoxos e desenvolvimentistas, autonomia para crescer implica eliminar o recurso à poupança externa para financiar investimentos e importações e concentrar esforços na melhoria da capacidade produtiva e tecnológica e da inserção competitiva internacional, com apoio seletivo do Estado.

Valor: Não é a falta de investimentos que impede o crescimento?

-------------------------------------------------------------------------------- Para crescer é preciso, nos próximos dois anos, flexibilizar a política monetária e não fazer bobagens na área fiscal" --------------------------------------------------------------------------------

Bielschowsky: A retomada dos investimentos é uma das dimensões da discussão sobre o futuro do país. Outras duas são as estratégias de desenvolvimento e a macroeconomia da inflação e do crescimento. Há que discutir crescimento a curto prazo e há que discutir a elevação dos investimentos e as estratégias de transformação, questões eminentemente de médio e longo prazos. Não é difícil recuperar o crescimento nos próximos dois anos e isso poderá estimular o investimento, sem o qual não há como crescer sustentadamente, a partir de 2009. O padrão de desenvolvimento em longo prazo é outra questão, que depende do tipo de investimento e da distribuição de renda.

Valor: É fácil voltar a crescer imediatamente, no Brasil?

Bielschowsky: A partir de agora e, digamos, em 2007 e 2008, basta eliminar o extremo conservadorismo na política de combate à inflação, resultante, talvez, de nosso passado hiperinflacionário, mas já totalmente fora de lugar. Não há, hoje, limitações de capacidade produtiva ou na capacidade para importar que justifiquem temor exagerado com o retorno da inflação. Ela está em níveis baixíssimos, a indexação praticamente desapareceu, mudou o patamar das exportações brasileiras e as reservas são confortáveis, os gastos fiscais estão sob controle, sob vigilância da sociedade. Mesmo na questão mais complicada, da produção de energia elétrica, há como recuperar o atraso, se a política econômica voltar-se efetivamente para o crescimento.

Valor: O que falta, para crescer?

Bielschowsky: Nos próximos dois anos, flexibilizar a política monetária e reduzir os juros reais e não fazer bobagens na área fiscal. Realizar pequenos ajustes fiscais, nada radicais, mas que garantam maior investimento sem ferir a credibilidade. Um problema atual é a excessiva valorização cambial. A depender da liquidez internacional, deverá ocorrer uma saudável desvalorização, com a queda dos juros e o retorno ao crescimento. A inflação poderá subir um par de pontos percentuais, para reacomodar variações de preços relativos com a desvalorização do real, mas não será nada que comprometa as atuais metas de inflação, ou que impeça que mais adiante ela volte a cair.

Valor: Mas, depois desses dois anos, sem investimentos, o crescimento se sustentaria?

Bielschowsky: Nos últimos 12 anos, sempre que houve freio, foi por causas que nada têm a ver com produto potencial e excesso de demanda. A exceção foi o apagão, em 2001, um problema localizado na área de energia, que não deve se repetir. O abastecimento de energia pode trazer problemas em 2009 ou 2010, mas há tempo para corrigir os atrasos. Há capacidade ociosa e reservas internacionais para acomodar a expansão enquanto o investimento se recupera. Mas, para crescer 5% ao ano, tem-se de aumentar a taxa de investimento gradualmente, dos atuais 20% a 21% do PIB até, quem sabe, uns 24% ou 25% do PIB em 2010.

Valor: Como se aumenta essa taxa de investimento?

Bielschowsky: É a grande missão governamental: ampliar os investimentos para dar sustentabilidade ao crescimento a médio e longo prazo. Há que ampliar o espaço para os investimentos públicos, sem prejuízo de um declínio suave e gradual na relação divida/PIB, que pode se dar tranqüilamente pela redução dos juros e pela aceleração da expansão do PIB. Também se precisa melhorar o clima para os investimentos privados, reduzir a percepção de riscos e incertezas.

Valor: Como incentivar investimentos privados?

Bielschowsky Primeiro, crescendo. Ninguém investe em expansão se tiver capacidade ociosa. Dois anos de crescimento a 5% ao ano ajudarão muito a estimular o ânimo investidor empresarial. Segundo, aumentando os investimentos públicos, para sinalizar ampliação na infra-estrutura. Terceiro, com sinais de que não se interromperá o crescimento com arrocho na política monetária. Essa é, talvez, a parte mais sensível da criação de um clima favorável.

Valor: Como assim ?

Bielschowsky: O empresário tem razões para desconfiança: desde 1994, todos os episódios de reversão do crescimento ocorreram por causa de um freio por parte das autoridades monetárias. É preciso confiar na continuidade da política monetária pró-crescimento, na linha manifestada pelo governo, recentemente. Se o empresário achar que os juros logo crescerão de novo, e que, para pagá-los, vai haver aumento de imposto, ele poderá até investir em modernização ou em inovação, mas não em expansão. Em 2007, o governo terá de ser firme em eventuais acidentes de percurso, como um possível efeito temporário, sobre preços internos, de uma eventual desvalorização cambial, e não poderá recuar na política de crescimento.

Valor: Alguns setores já não estão investindo mais?

Bielschowsky: Grandes empresas, como a Petrobras, a Vale do Rio Doce, siderúrgicas e produtoras de celulose, voltadas ao comércio externo, estão aumentando fortemente os investimentos. As decisões nessas empresas, muito competitivas, são menos sensíveis à política monetária interna e mais afetadas pela conjuntura internacional. Uma melhoria no cenário doméstico as fortalece ainda mais e ajuda a generalizar um clima investidor. Mas o verdadeiro acelerador do investimento virá da imensa maioria de empresas, de olho principalmente no mercado interno. Esse pessoal precisa de juros baixos, e, parte deles, também de um câmbio menos desfavorável. Sua propensão a investir cresce com maiores investimentos públicos, especialmente em energia e transporte.

Valor: O que mais cabe ao governo?

Bielschowsky: Além de uma sólida e persistente macroeconomia pró-crescimento e de ajustes fiscais pró-investimento (com ênfase nos investimentos, em relação aos gastos corrente, desonerações localizadas etc) o governo tem que trabalhar em novas engenharias de financiamento do investimento, como as parcerias público-privadas e a criação de fundos. Tem de ser capaz de facilitar grandes investimentos hoje travados por problemas burocráticos e ambientais, facilitar a articulação entre grandes empresas para investimentos estruturantes e tem que fazer aperfeiçoamentos institucionais relativamente simples, que dispensam leis ou emendas constitucionais, como criar fundos para investimento ou o cadastro positivo, para queda dos juros bancários.

Valor: Mas não são necessárias reformas mais profundas, na previdência, trabalhista, no sistema jurídico, política?

Bielschowsky: A discussão sobre reformas não pode ser questão só da direita, ou dos alinhados com as receitas pretensamente universais do Consenso de Washington. A história dos países que se desenvolvem sempre inclui mudanças institucionais, às vezes profundas, quase sempre com elementos particulares de cada país. Mas um estudo de Hausmann, Pritchet e Rodrik mostra que só em cerca de 15% dos países com crescimento sustentado por longo período esse crescimento foi precedido por reformas liberalizantes. Esse estudo mostra também que reformar não garante crescimento, porque mais de 80% dos países que fizeram reformas não conseguiram crescer.

Valor: As reformas, então, são dispensáveis?

Bielschowsky Não necessariamente, mas é possível crescer, em curto e médio prazos, sem reformas. Talvez a principal exceção seja a questão previdenciária, pelos sinais de longo prazo que emite sobre o equilíbrio fiscal. Reformas de maior vulto podem ser feitas na medida em que for recomendável, em que o crescimento econômico oxigenar o clima político em favor delas. Sou sensível à idéia de que algumas reformas podem ser necessárias para melhorar o clima de investimento. Precisamos discutí-las sem preconceitos ideológicos.