Título: Evidências de doença holandesa no Brasil
Autor: Gala, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 15/12/2006, Opinião, p. A14

O resultado das contas nacionais do terceiro trimestre divulgado pelo IBGE apresenta evidências preocupantes de um processo de doença holandesa no país. Como mostra o gráfico abaixo, o subsetor de extração mineral apresenta uma taxa de crescimento de 7,2% acumulada nos últimos quatro trimestres. Na seqüência aparecem os sub-setores de construção (4,5%) e comércio (3,4%), evidenciando a expansão do setor de não-comercializáveis de um modo geral. Nas últimas posições do gráfico aparecem a agropecuária e a indústria, com crescimento medíocre de 1,6% e 0,7% respectivamente. O gráfico apresenta uma espécie de raio x das mudanças recentes em nossa economia. O setor externo, com exceção de recursos naturais, perde dinamismo e a produção de não-comercializáveis é estimulada num típico quadro de doença holandesa.

O termo doença holandesa foi cunhado para descrever os problemas que surgiram na Holanda nos anos 60 e 70 a partir da descoberta de reservas de gás. O acréscimo repentino de exportações desse produto causou mudanças importantes na economia holandesa. A excessiva apreciação cambial decorrente da renda gerada pela nova descoberta implicou numa retração do setor de bens comercializáveis manufatureiro holandês, que acabou por gerar desemprego e menores taxas de crescimento. A situação econômica do país piorou após a descoberta das reservas numa situação paradoxal que ficou conhecida como o problema da doença holandesa ou maldição dos recursos naturais. Muitos outros casos do gênero foram analisados. Alguns autores mostraram como a descoberta de ouro na Austrália no século XIX causou problemas semelhantes ou ainda como o caso do forte fluxo de ouro para a Espanha no século XVI devido às descobertas na América foi também nocivo. Em termos mais gerais, a síndrome da doença holandesa está vinculada, paradoxalmente, aos efeitos negativos decorrentes das rendas econômicas geradas por grandes descobertas ou abundância de recursos naturais, tais como ouro, diamantes, petróleo e gás.

Os modelos econômicos que descrevem os problemas de doença holandesa assumem uma economia de três setores: bens não-comercializáveis, recursos naturais comercializáveis e bens comercializáveis agrícolas ou manufaturados. Alguns autores analisam a questão em termos de um setor de não-comercializáveis, um setor de comercializáveis em expansão e um setor de comercializáveis em retração, sendo o segundo o setor de extração de recursos naturais e o terceiro o setor de manufaturas e agricultura para exportação. O aumento dos preços dos recursos naturais estimula a produção desse setor, causando apreciação cambial que reduz a competitividade e produção do setor de manufaturas e do agronegócio. O setor de não-comercializáveis também se beneficia da apreciação cambial e da renda adicional gerada no setor de recursos naturais.

Na lógica tradicional desses modelos, a expansão do setor de recursos naturais causa apreciação cambial por dois canais possíveis: maior fluxo de divisas devido ao acréscimo de exportações e aumento do preço dos bens não-comercializáveis por conta do aumento de demanda interna gerada pelos ganhos de renda no setor de recursos naturais. O setor de comercializáveis manufatureiro e agrícola é prejudicado pois perde os fatores de produção capital e trabalho que são deslocados para os setores de não comercializáveis e de recursos naturais.

Essas conseqüências também podem ser descritas em termos de dois efeitos: deslocamento de recursos, onde capital e trabalho são transferidos para o setor de comercializáveis em expansão devido ao aumento de rentabilidade e o efeito de gasto, onde os fatores utilizados no setor de comercializáveis em retração também são transferidos para o setor de não-comercializáveis como conseqüência do aumento de demanda. O destaque para o segundo efeito está no aumento da demanda por não comercializáveis decorrente do acréscimo de renda gerada no setor em expansão. Os comercializáveis agrícolas e manufaturados passam então a ser importados. No final de um processo com essas características o setor de não-comercializáveis e de recursos naturais se ampliou e o setor de comercializáveis não tradicional, especialmente a indústria, encolheu em termos relativos.

Os efeitos negativos da doença holandesa já são bastante conhecidos entre os economistas. A excessiva apreciação cambial bloqueia o desenvolvimento de um setor de bens comercializáveis não tradicional agrícola ou manufatureiro. Assumindo-se que existem externalidades positivas, importantes processos de aprendizagem e encadeamentos industriais na produção desses bens, a ausência ou retração de um setor desse tipo traz sérias conseqüências em termos de dinâmica tecnológica e ganhos de produtividade. A regressão do setor de comercializáveis agrícola e manufatureiro resulta em perdas, possivelmente irreversíveis, de "know-how", capacidades locais e plantas produtivas. Num processo deste tipo, a indústria volta-se para dentro, especializando-se na produção de bens não-comercializáveis que apresentam maior rentabilidade graças à apreciação cambial. Dependendo da intensidade do processo, a economia se torna excessivamente "inward-looking", o que também acaba prejudicando seu nível de eficiência devido à ausência da competição que seria encontrada no mercado mundial.

Paulo Gala é professor da Escola de Economia de São Paulo, FGV/SP