Título: Chile: exemplo para a América Latina
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 14/12/2006, Opinião, p. A15

As mortes de Augusto Pinochet e a saúde debilitada de Fidel Castro assinalam o fim de uma era na América Latina. Deveríamos lembrar sem qualquer pesar os revolucionários barbudos e os déspotas militares, o fervor ideológico e os sonhos utópicos. Apesar da recaída de populismo de Hugo Chávez na Venezuela e de Evo Morales na Bolívia, um estilo mais sóbrio de política democrática está deitando raízes em toda região.

Esse é o tema de um fascinante livro de Javier Santiso, diretor adjunto do centro de desenvolvimento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCED) - "Latin America´s Political Economy of the Possible: Beyond Good Revolutionaries and Free-Marketeers", MIT Press, 2006. "Desde sua independência", argumenta ele, "uma das dependências fundamentais da América Latina tem sido sua crença em milagres: os milagres forjados por mágicos - marxistas ou defensores do livre-mercado, revolucionários e contra-revolucionários -, com base em um punhado de grandiosas teorias e paradigmas". Em vez disso, hoje há "um movimento dual de reformas econômicas e transição para a democracia", abraçando a "economia política do possível".

Em seus amplos contornos, a argumentação de Santiso é convincente. Reformas econômicas - traduzidas em maior ênfase nos mecanismos de mercado - efetivamente disseminaram-se, aos trancos e barrancos, em toda região. Enormes erros foram cometidos. Mas somente o presidente Chávez, fortalecido pela riqueza que jorra de seus poços petrolíferos, sente-se à vontade para ignorar totalmente a racionalidade econômica.

Igualmente notável é a transição para uma democracia relativamente estável em toda região. Durante muito tempo, a América Latina foi uma região de excepcional instabilidade política, traduzida não em trocas de governos, mas de regimes. Ao longo das últimas duas décadas, porém, as transmissões de poder democrático ordeiras tornaram-se norma. Desde 1983, observa Santiso, "nenhum presidente latino-americano foi tirado à força do cargo por uma insurreição militar". Quando um mandato foi terminado prematuramente, isso deveu-se a protestos de massas, escândalos de corrupção ou ações judiciais. As democracias na região são freqüentemente bagunçadas. Ainda assim, são democracias.

Para socialistas ocidentais românticos e populistas latino-americanos, Castro continua sendo uma figura carismática adorada por sua bravata anti-americana. Mas isso nos diz mais sobre a psicologia dessas pessoas do que sobre qualquer outra coisa. Fidel é um fóssil. Parece improvável que seu regime sobreviva a ele. Nem deveria: o regime de Castro é uma ditadura brutal, responsável pela morte de milhares de adversários em seus primeiros anos e pela prisão, sem julgamento, de milhares de outras pessoas. Cuba é também um fracasso econômico: isso é parcialmente conseqüência do embargo americano - mas uma desculpa apenas parcial. Mesmo assim, esse embargo foi, e é, estúpido. Seu único valor foi demonstrar a ineficácia de sanções sob quase quaisquer circunstâncias.

Também Pinochet foi um tirano brutal, responsável pelas mortes de milhares de pessoas e pela prisão e tortura de outras dezenas de milhares sem julgamento. Entretanto, numa lista de países que converteram em sucesso o "possibilismo" a que se refere Santiso, o Chile está em em primeiro lugar. Alguns analistas - por vezes, até mesmo Santiso - desejam fazer de conta que isso nada tem a ver com o regime de Pinochet. Mas, gostemos ou não, esse reacionário brutal e corrupto, por razões que não são claras, lançou as reformas que estabeleceram as bases para o sucesso contemporâneo do país. Mais surpreendente ainda, quando perdeu um referendo em 1988, Pinochet deixou o poder. Castro não seguiu esse exemplo.

-------------------------------------------------------------------------------- Entre 1985 e 2005, o PIB per capita chileno subiu de 24% para 40% do americano e o Chile tornou-se exceção em meio ao histórico de declínio da região --------------------------------------------------------------------------------

A trajetória econômica chilena não foi absolutamente tranqüila. Após a monstruosa inflação do início dos anos 70 e a queda na renda per capita, que foi a causa econômica imediata do golpe, seguiu-se uma vigorosa recuperação. Esta, então, terminou numa crise financeira em 1982. A crise chilena da década de 80 foi um modelo para a crise "Tequila" em 1995, que começou no México, e as crises financeiras na Ásia em 1997-98. Como argumenta o chileno Sebastian Edwards, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, a combinação de um sistema financeiro desregulamentado com uma âncora cambial e salários indexados foi nociva (Stabilization with Liberalization, Economic Development and Cultural Change, janeiro de 1985). A experiência produziu muitas lições, nenhuma delas aprendida a tempo em outros países.

A exceção a essa lamentável regra foi o próprio Chile, onde um renovado, embora mais pragmático, direcionamento para o mercado, reforçado por melhorias na qualidade institucional, fez da economia a estrela da região. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita no país (em paridade de poder de compra) é hoje bem superior ao da Argentina, Brasil e México. Entre 1985 e 2005, o PIB per capita chileno subiu de 24% para 40% do americano, fazendo do Chile uma exceção em meio ao histórico generalizado de declínio relativo da região. O aumento nas rendas reais per capita entre 1975 e 2005 foi de 181%. Uma transição harmoniosa para a democracia e políticas públicas responsáveis implementadas por políticos eleitos solidificaram esse êxito.

O histórico chileno foi construído sobre políticas sensatas centradas no mercado e em boas instituições. Segundo os indicadores de governança do Banco Mundial, o Chile está muito à frente de outros países latino-americanos em termos de qualidade das instituições políticas, legais e de agências regulamentadoras. Analogamente, o relatório "Doing Business" (2007), do Banco Mundial, coloca o Chile na 28ª posição em termos de facilidades para a atividade empresarial, bem à frente do México (43ª), Argentina (101ª) e Brasil (121ª). A Moody´s classifica a dívida chilena na categoria "A2". Até mesmo o México está estagnado na categoria "Baa1".

A era dos déspotas terminou. Mas o êxito do regime democrático não está garantido. Em última instância, democracia estável depende de amplo sucesso econômico, que tem sido, infelizmente, demasiado raro. Os países latino-americanos continuam vulneráveis aos caprichos dos mercados mundiais - financeiro e de commodities. As desigualdades econômicas e sociais internas continuam enormes. A ascensão da China tem sido uma dádiva para os exportadores de commodities, mas também espremeu a indústria de transformação de baixa e média sofisticação tecnológica latino-americana entre, de um lado, os concorrentes asiáticos, e de outro, os dos países avançados.

Em resposta, a América Latina precisa aperfeiçoar suas instituições, tornar seus mercados mais flexíveis, melhorar seus sistemas educacionais, acumular competência tecnológica e distribuir os benefícios do crescimento. Os EUA não podem proporcionar o modelo institucional que a União Européia oferece a seus novos membros. Mas pode deixar os países latino-americanos livres para que façam suas próprias experiências. Os países latino-americanos precisam encontrar seu próprio caminho. Mas eles têm no Chile contemporâneo algo precioso: um bom exemplo.