Título: A China já tem poderosa classe média
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 14/12/2006, Especial, p. A16

"Como é a classe média no Brasil. Quantos são da classe média? Os jornalistas são classe média?"

As perguntas surpreendem porque, durante todo o jantar num restaurante de Xangai, o jovem jornalista chinês, 25 anos, não pronunciara uma só palavra. Limitara-se a acompanhar interessado a conversa entre o brasileiro, a intérprete e um outro jornalista chinês, mais velho e experiente. Este era o que mais falava, indicara o restaurante "pela qualidade da comida e pelo preço" (expectativas perfeitamente confirmadas) e discorria sobre todas as coisas (boas) que, desde a abertura da economia, em 1977, acontecem em seu país.

Em verdade, aquelas são perguntas que os jovens chineses se fazem a si próprios sobre seu próprio país. O que é a classe média na China, quantos pertencem a ela? Como chegar a ela?

O jovem certamente ainda não se sente integrado nesta categoria. É solteiro, ganha pouco, só come em restaurantes razoáveis quando convidado, não tem carro, ainda mora com os pais, saiu da universidade (um curso de Letras) diretamente para o jornal por recomendação de alguém filiado ao Partido e já começa a indagar-se se não deveria ter escolhido outra profissão. Percebe-se que este é o seu problema, a curiosidade reflete suas angústias.

O jovem representa milhões de chineses da mesma idade que, saídos da Universidade, começam a enfrentar a vida com preocupações diferentes da de seus pais. Estes últimos, hoje na faixa dos 50, 60 anos, são funcionários públicos, tiveram experiência política na juventude, estiveram entre os jovens algozes ou vítimas da Revolução Cultural (1966-1977) e se sentem orgulhosos de, depois de tanto sacrifício, seu país ser agora um dos mais poderosos do mundo. Mas na sua juventude não existia classe média, nem sequer o proletariado (a transplantação chinesa mais próxima do que Marx chamou de proletariat é "classe sem propriedades". A China sempre teve dificuldades para compor o cartesianismo de Marx-Lênin com o confucionismo de seu povo e o voluntarismo de Mao), os chineses se distribuíam, nas comunas do campo e nas tarefas das cidades, entre os que decidiam e os que cumpriam o decidido no aparelho de Estado. Não pensavam em ter propriedades, até que Den Xiaoping, em 1977, cunhou o "slogan" famoso: "Enriquecer é a glória".

Em outubro último, segundo a Merrill Lynch, 320 mil chineses já se poderiam considerar gloriosos, pois acumulavam fortuna superior a US$ 1 milhão. E os jovens sabem que, para chegar lá, têm de passar pelo vestíbulo da nova classe, a média.

Esta efetivamente já existe e aumenta em quantidade. Isso se percebe nas ruas, pelo congestionamento dos carros novos, nos edifícios de apartamentos em construção - enfim, as primeiras propriedades -, nas ofertas das agências de viagens. Os ricos vão para Paris e Nova York; a classe média para Tailândia, Austrália, ou ilhas do Pacífico.

Contar os ricos é mais fácil do que contar os que ainda não conseguiram chegar lá e pensam estar a caminho. Estatísticas e palpites situam a classe média na ampla faixa dos 120 milhões a 300 milhões. Já é quantidade suficiente de chineses para construir um grande e promissor mercado. Para essa população, a americana Procter & Gamble, a maior do mundo no seu setor, fabrica na China e vende no mercado interno sabões em pó, pasta de dentes, artigos de toucador, fraldas, num total de US$ 1 bilhão por ano. A francesa L' Oréal faturou 340 milhões de euros em 2005 e pretende crescer 20% este ano, com o Lancôme importado e dezenas de produtos mais populares produzidos na China mesmo - entre eles o "Layá", que é como o chinês pronuncia L' Oréal. Ambas empresas são presididas por italianos, Daniella Riccardi e Paolo Gasparrini. Riccardi, da P&G, diz que em 10 anos o mercado chinês vai superar o dos Estados Unidos. Gasparrini, que dirigiu a L' Oréal no Brasil, tem passaporte brasileiro e um apartamento na Visconde de Pirajá, em Ipanema, chegou à China em 1997 e, com outros seis estrangeiros e sete chineses, instalou a primeira fábrica em Suzhou e comprou mais duas em Pudong e Yichang.

"Queríamos produzir para o mercado local e fazer alguma exportação para os países vizinhos. Hoje só atendemos o mercado interno e estamos permanentemente ampliando nossas fábricas", diz Gasparrini. A L' Oréal emprega diretamente 5 mil pessoas e terceiriza outras 5 mil.

Escorado em estudos de marketing de sua empresa, o ítalo-brasileiro estima que a classe média na China seja algo superior a 120 milhões de pessoas. Seus cálculos têm como base um salário superior a 2.500 yuans (US$ 320) por mês. Os palpites que ampliam a classe média para 250/300 milhões provêem de fontes oficiais, com base, entretanto, superior: 3 mil yuans (US$ 384). Pelos padrões ocidentais, especialmente dos Estados Unidos, onde os chineses cada vez mais se inspiram, "isto é muito pouco para construir uma classe média", como observou o professor de Economia You Nou, colunista do "China Daily". Ocorre que a China, com uma política não revelada de subsídios para alimentação, transporte, energia, pratica baixos salários e isso distorce as comparações com o mundo exterior. Os baixos salários explicam o investimento estrangeiro - a mais valia viria daí, se alguém na China ainda se importasse com Marx e Engels - e tornam mais baratos também os produtos que atraem a classe média: carro, roupas, celulares, pois é tudo fabricado aqui.

Conversar com jovens de classe média é um problema. Eles são permanentemente interrompidos pelo toque do celular. E no celular barato eles não falam. Escrevem, ou melhor, digitam. A China espera atingir ainda neste inverno do hemisfério norte 500 milhões de celulares produzidos e vendidos internamente

Yuan Yue, um pesquisador chinês que trabalha para o americano Horizon Research Consultancy Group, parte de critérios culturais para definir a classe média de seu país: salário em ascensão, emprego estável, boa educação. "É diferente dos Estados Unidos. Lá a classe média é um casal com três filhos, um cachorro, dois carros, casa já paga. Aqui o típico casal de classe média só tem um filho, um carro, não tem cachorro, e paga seu apartamento em 20 anos a juros mais baixos."

Mas os novos hábitos chineses procuram ser os mesmos dos americanos. Dezembro começou com os supermercados e shopping centers enfeitados para o Natal. Papai Noel está presente, velhinho, barba branca, vestido de vermelho e nem sequer os olhos puxados tem. Novembro, aliás, terminou com a festa do "Thanksgiving", assim mesmo em inglês. Só faltou o peru no Dia de Ação de Graças, substituído pelo tradicional pato laqueado.

Para Yuan, o americano de classe média ganha entre US$ 40 mil e US$ 200 mil anuais. O chinês, de US$ 7,5 mil a US$ 75 mil.

O professor You Nuo parece entender as angústias do jovem jornalista do início desta história, mas faz uma recomendação moralista, bem ao gosto do velho padrão americano e do novo padrão chinês: "Para chegar à classe média tem que estudar e trabalhar duro. Basta olhar os exaustos rostos no rush do fim da tarde em Nova York, para constatar a luta de cada um para ter sucesso em sua carreira e conquistar o padrão de vida de classe média".

Max quem é a classe média e como vive? Zhang Ping e Cao Ling formam um casal quase típico. Ela, Cao, trabalha no Ministério de Relações Exteriores (US$ 5 mil anuais), ele, Zhang, numa firma estrangeira de consultoria imobiliária (não quis dar o nome) e ganha US$ 18.750 anuais. Seu apartamento, em Pequim, de 140 metros quadrados, está sendo pago em 20 anos, a US$ 500 por mês. Têm uma filha, Fangran, e um Buick. A prestação do apartamento é a sua maior preocupação, razão de viverem apertados, mas Zhang tinha um pequeno apartamento no subúrbio que os pais compraram em seu nome ainda antes da abertura econômica. Zhang o aluga por US$ 250 e isso ajuda a pagar a prestação do apartamento maior. Eles pretendem que sua filha viaje no futuro para o exterior, para fazer universidade ou pós-graduação.

Os fins de semana do casal são em família: no sábado visitam os pais de Cao, nos domingos os pais de Zhang. As mulheres vão para a cozinha e os homens jogam dominó. Há casos, não é o de Zhang e Cao, em que os avós não têm economias para cumprir a obrigação anual de dar presentes ao neto na Festa da Primavera, em abril. Os jovens sugerem que o dominó, nas semanas que precedem a festa, seja a dinheiro. A jovem esposa se junta ao marido e participam do jogo também alguns primos e até vizinhos. E deixam o "velho" ganhar. Nesta situação está o que os chineses chamam de "geração sanduíche", pessoas de 30 a 40 anos, que têm de cuidar do filho e também dos pais, que já deixaram de trabalhar mas não têm aposentadoria, ou trabalharam em estatais e foram demitidos nestes tempos de reestruturação e privatização.

Com estas reportagens encerra-se a série "O império globalizado''