Título: Símbolo do capitalismo industrial se reinventa
Autor: Geraldino, Gilson
Fonte: Valor Econômico, 08/12/2006, Opinião, p. A14

Umas das principais características da indústria automobilística é o impacto que tem sobre vários setores da economia, tanto antes da fabricação do automóvel, tais como aço e vidros; quando durante a montagem do carro, que demanda peças e componentes eletrônicos de todo tipo; quanto após a fabricação do automóvel, quando induz à procura por seguros e acessórios esportivos.

O uso universalizado de automóveis e os efeitos que tem sobre as economias fazem com que os problemas desta indústria ultrapassem a linha de montagem. Para contorná-los, muitos ajustes foram feitos durante o século XX. São ajustes pouco triviais, tanto sob o ponto de vista setorial quanto da firma.

Os alemães tiveram contribuições seminais na concepção do automóvel, e os americanos na forma de fabricar. Fordismo, o modo de produção criado por Henry Ford, virou sinônimo de produção em série.

Nos EUA, houve intenso processo de concentração na indústria automobilística no início do século XX. As firmas vencedoras implementaram mecanismos para atrair os melhores trabalhadores. O resultado da barganha entre sindicatos e empregadores foi favorável aos empregados. Os benefícios generosos viram aumento de custos e perda de competitividade por parte das firmas americanas.

A entrada das firmas japonesas no mercado americano - forma encontrada para burlar as barreiras à importação - produziu novas mudanças. As entrantes tomaram mercado das firmas estabelecidas. Houve redução de margens de lucro das firmas americanas devido à queda nas vendas e ao aumento dos custos. O modo de produção japonês teve um diferencial importante. Toyotismo, o modo de produção criado pela Toyota, também passou a ser verbete e just-in-time também passou a fazer parte do vocabulário.

A demanda por segurança e os choques do petróleo induziram a fabricação de automóveis mais seguros e econômicos. Injeção eletrônica de combustível, cinto de segurança de três pontas e air bag passam a ser itens de série.

A globalização dos mercados induziu as firmas a produzirem no país que tem menor custo e a venderem no país que tem maior demanda. Antes, prevalecia a idéia de produzir para vender no próprio mercado. Houve uma onda de fusões, aquisições e joint-ventures entre firmas para se adaptarem aos novos tempos, que, mais que nunca, exigiram economias de escala e escopo.

O Brasil já foi considerado um mercado relevante para produção e consumo de automóveis. Entre os anos 50 e meados dos 70, o mercado era dividido entre VW, GM e Ford. O mesmo modelo era produzido por décadas. Ausência de inovação induzia o consumidor brasileiro a ficar com o mesmo modelo por vários anos.

-------------------------------------------------------------------------------- A demanda por segurança e os choques do petróleo induziram a fabricação de automóveis muito mais seguros e econômicos --------------------------------------------------------------------------------

A entrada da Fiat foi um primeiro passo no sentido de alterar a estrutura do mercado e a induzir inovação via competição. O sucesso da família 147 produziu reação dos concorrentes. Mas nada se compara às mudanças que ocorreram nos anos 90, após Collor dizer que os carros fabricados no Brasil eram carroças.

Houve mudança radical no mercado brasileiro de automóveis. É notória a maior diversidade de modelos e a atualização tecnológica, como bem ilustram fotos de engarrafamentos dos anos 70 quando comparadas com as de 2000. Batemos recordes na produção de veículos - mais de dois milhões de unidades. O Brasil tornou-se importante plataforma de exportação. Alguns modelos passaram a ser lançados simultaneamente aqui e no mundo, como o caso do Chevrolet Meriva.

Apesar dos ajustes macroeconômicos nos anos 90, particularmente abertura comercial e o controle da inflação, a demora em fazer reformas microeconômicas e ajustes fiscais estruturais tem trazido retrocessos para o Brasil e reversão de expectativas. Estudo do Banco Mundial de 2007 mostra que nosso ambiente de negócios é um dos piores do mundo: 121º, entre 175 países. Estudo do Ipea mostra que os gastos do INSS representam 40% das despesas do governo, que por sua vez representam 18,6% do PIB (era 9,9% em 1991). Recentemente os países emergentes têm crescido à taxa média de 7% ao ano, o mundo a 4% e o Brasil a 2%.

Há sinais de mudança de prioridades. O Brasil não parece ser mais tão importante como produtor. A VW, por exemplo, já investiu mais de US$ 4 bilhões na China, um mercado que no ano passado passou à frente da Alemanha, assumindo o terceiro lugar no ranking mundial de produção de veículos. O anúncio da vinda de carros chineses em 2007, porém, sugere que o país ainda pode ser útil enquanto consumidor.

Neste início de século XXI, Índia e China passaram a fazer parte das curvas de oferta e demanda de automóveis. O fluxo de investimentos produtivo mundial se deslocou para Ásia, abrindo novas plantas, mais atualizadas tecnologicamente que as existentes nas Américas e na Europa. Vale lembrar que a Coréia do Sul levou apenas quatro anos para ser um grande competidor no mundo dos automóveis.

Junto com a busca por novos mercados, há a busca por combustíveis alternativos. Tanto as pressões para reduzir a poluição causada por gases - e os automóveis são uma fonte importante; quanto o crescente uso de equipamentos eletrônicos e possibilidade de conexão com a internet através de sistemas portáteis de navegação por satélite, como o Easyroad, tornam os carros grandes consumidores de energia. Não nos assustemos se deixarmos carros à gasolina com baterias de 12 volts para utilizarmos carros à biodiesel com baterias de 42 volts.

Toda esta reviravolta na indústria automobilística sugere que a variável relevante para as firmas, lucro, não muda. Onde e como se produz e se vende, porém, é secundário. Afinal, isso é fácil mudar.

Gilson Geraldino Silva Jr é economista e doutorando em Economia Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)