Título: China completa a abertura bancária
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 08/12/2006, Especial, p. A16

Para ser admitida na Organização Mundial do Comércio (OMC), a China assumiu o compromisso de transformar-se numa economia de livre mercado e tinha prazo de quinze anos para cumprir rigoroso cronograma de exigências. A primeira delas já pode ser tirada da lista. Na segunda-feira entra em vigor a resolução do Banco do Povo da China - seu banco central - que permite aos bancos estrangeiros se estabelecerem no país, abrirem agências e disputarem com as instituições locais um florescente mercado de depósitos, empréstimos, investimentos, cartões de crédito e tudo o mais que a criatividade do setor possa chamar de produto.

A abertura ocorre exatamente no limite do prazo. Foi em 11 de dezembro de 2001 que a China entrou para a OMC, e a questão bancária tinha de ser resolvida em cinco anos.

Festa? Sim e não. Até aqui, 103 bancos estrangeiros (60 baseados em Xangai) atuavam com limitações. O HSBC, presente na China desde o início do século passado, tinha, por exemplo, autorização para trabalhar no interbancário, associar-se a bancos locais, inclusive estatais, transacionar com empresas estrangeiras, mas não podia operar como banco de varejo, captar e oferecer crédito em moeda local. Agora pode, em igualdade de condições com os bancos nacionais. Mas, como todos os bancos estrangeiros, vai ter de submeter-se às rígidas regras que o Banco do Povo estabeleceu.

A primeira delas é instalar-se na China como pessoa jurídica local. E isso custa caro. É preciso internalizar o mínimo equivalente a 1 bilhão de yuans (US$ 125 milhões) para constituir o capital do banco "chinês". E mais a provisão de 100 milhões de yuans (US$ 12,5 milhões) para cada agência que abrir. Há um cronograma de cinco anos para o cumprimento dessas exigências. "Vamos facilitar a tramitação do processo de autorização, que deverá durar de um a três meses", anunciou um porta-voz.

Xu Feng, diretor de assuntos internacionais da Comissão Regulatória do Sistema Bancário da China, disse que as condições impostas pelo governo procuram proteger os interesses do país e dos clientes dos bancos contra crises externas. "Não queremos que depositantes chineses tenham prejuízo com problemas que os bancos venham a enfrentar em outros países. A exigência é consistente com os compromissos da China na OMC e está em linha com as normas internacionais e os princípios gerais de supervisão da prudência bancária", disse Xu Feng, com completo domínio, em inglês, de todos os jargões da profissão.

Segundo Xu Feng, mais de dez bancos estrangeiros já manifestaram ao governo que estão prontos para aceitar as regras e disputar o mercado. Vale a pena? Representantes de grandes bancos multinacionais dizem que sim. Um deles é precisamente o HSBC. Richard Yorke, responsável pelas operações do HSBC na China, distribuiu nota saudando a novidade e afirmando que a permissão para atuar no mercado interno sob o mesmo sistema regulatório dos bancos locais vai ampliar seus negócios, especialmente na concessão de empréstimos em moeda chinesa.

Katherine Tsang, do Standard Chartered Bank, banco londrino com negócios voltados para a Ásia, disse que já encaminhou às autoridades o pedido de reconhecimento como banco "chinês". O Hang Seng Bank, controlado por capitais de Hong Kong e também muito presente na China, informou que planeja abrir cerca de 30 agências pelo país e tem US$ 128 milhões para investir nas disputa por clientes em yuans. O Hang Seng já possui 15 agências, limitadas a transações com empresas estrangeiras.

Reincorporada à China em 1999, a antiga possessão inglesa de Hong Kong não é considerada totalmente integrante do país. Suas empresas ainda são qualificadas como estrangeiras e seu território não está incluído no que os intérpretes traduzem para o inglês como "mainland" (terra firme, continente). O mesmo acontece com Macau, ex-possessão portuguesa. Chineses do "mainland" não podem ir a Hong Kong e a Macau sem permissão.

O mercado bancário chinês é realmente atraente e, apesar da frustração com uma abertura que não será exatamente gratuita como esperavam, os bancos estrangeiros parecem dispostos a pagar o preço. Por três razões.

A primeira é a exponencial dimensão deste mercado: o crédito geral na China, segundo fontes do próprio setor, está 5 pontos percentuais acima do PIB nacional (Estados Unidos, 55% do PIB; Brasil, 33%). Só nos primeiros três meses do ano, os bancos locais emprestaram 1,26 trilhão de yuans (US$ 155 bilhões), mais que a metade do que esperavam emprestar durante o ano todo.

"Nenhum grande banco global vai correr o risco de ficar de fora. O chairman que fizer isso e verificar que seu concorrente topou a parada, já pode considerar-se demitido pelos acionistas", disse, em Xangai, um gerente de banco americano, confiante em que seu chefe em Nova York protegerá o próprio pescoço.

A segunda razão é a certeza de que, pela tecnologia incorporada ao seu modo de atuação, os bancos estrangeiros poderão conquistar mercado na classe média e entre os jovens, já acostumados ao uso de cheques, cartões de crédito, caixas automáticos, internet e aplicações em moeda estrangeira (o depósito em dólares é permitido em qualquer banco, mas o resgate tem de ser em yuans).

-------------------------------------------------------------------------------- "Não queremos que depositantes chineses tenham prejuízo com crises em outros países" --------------------------------------------------------------------------------

A terceira razão é que encontrarão saneado o ambiente para negócios financeiros. Nos últimos três anos, o governo promoveu uma reformulação do setor e capitalizou os bancos estatais (o Proer chinês foi gradual, volumoso - cerca de US$ 100 bilhões - e silencioso), obrigando-os a aperfeiçoar os mecanismos contra futuros créditos podres e a atuar como competidores entre si e com o restante do sistema. O governo absorveu os créditos podres desses bancos e agora encontra dificuldades para leiloá-los entre estrangeiros, que reclamam do preço alto do lance inicial.

Os bancos estrangeiros, pelo menos até 2008, continuarão usufruindo o privilégio legal das empresas de outros países (de qualquer atividade) que investem na China: pagam 15% de imposto sobre seus lucros, enquanto as empresas nacionais pagam 33%. Depois de 2008 o governo pretende equiparar nacionais e estrangeiros em relação ao fisco, inclinando-se pela fixação de uma taxa de 25%.

Não é conhecida nenhuma reação negativa, pública, dos bancos nacionais privados à abertura. Seus porta-vozes têm apenas afirmado que se encontram em condições de competir, pois já se modernizaram o suficiente. Nos bancos estatais é que os estrangeiros encontrarão seu adversário mais forte, especialmente entre os chamados "quatro grandes", pertencentes ao governo central: Banco da China, Banco Industrial e Comercial da China, Banco da Construção da China e Banco da Agricultura da China.

Os três primeiros fizeram oferta pública de ações com adesão que superou as expectativas e estão listados nas bolsas de Hong Kong e Xangai. O último fará sua oferta de ações ainda neste inverno chinês. Esses bancos têm agências em todo o país e competem ferozmente entre si. Depois da reestruturação a que foram forçados pelo governo, os salários dos executivos se equipararam aos dos estrangeiros, e os gerentes passaram a receber prêmios pela performance de sua agência, como acontece em todo o mundo.

Em diversos bairros de Pequim, as agências, equipadas com o que existe de mais moderno no atendimento ao público, costumam ficar uma ao lado da outra, e o espaço do quarteirão ainda tem de ser dividido com concorrentes menores, mas igualmente agressivos, os bancos dos governos provinciais. Os "quatro grandes" foram os principais responsáveis pelo financiamento do desenvolvimento chinês, tiveram grandes lucros e também fizeram muitos maus negócios, no que foram copiados por bancos privados locais.

Os maus negócios se deveram a erros involuntários de análise de risco ou à conhecida "guanxi", expressão usada na China para qualificar os relacionamentos necessários para se ter sucesso na vida. Prática antiga, o guanxi pode ser um inocente relacionamento com o bilheteiro do teatro que consegue melhor lugar na platéia, passa pelo funcionário que agrada ao chefe para receber promoção e vai até o domínio da técnica de localizar quem, numa repartição pública ou num banco, aceita visitantes que, ao sair, esquecem malas com dinheiro. Um dos objetivos manifestos da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung era acabar com o guanxi.

Segundo o Banco do Povo, a inadimplência nos bancos chineses chega a 6,6% do PIB. A consultoria Ernst Young discordou dos números e publicou seu próprio levantamento: 41% do PIB. Sem maiores explicações, uma semana depois da publicação, o estudo foi retirado do site internacional da consultoria.

Oxigenados, os "quatro grandes" esperam enfrentar a concorrência em situação confortável. Seus quadros dirigentes foram substituídos nos últimos anos, com o recrutamento de especialistas em produtos bancários formados no exterior. Além disso, contam com uma formidável rede de agências espalhadas pelo país, enquanto seus adversários terão de avaliar a cada passo se este vale o volume da aposta.

Os estrangeiros, entretanto, não estão apenas interessados em abrir agências. Querem associar-se aos bancos chineses ou ser donos deles. Depois de um ano e meio de disputa com o Société Générale, da França, o Citigroup comprou, por US$ 3,06 bilhões, 19,9% do Banco de Desenvolvimento de Guangdong, província de 110 milhões de habitantes e dona dos mais altos índices de crescimento do país, depois de Pequim e Xangai.

O limite legal para a participação de estrangeiros em bancos nacionais, estatais ou não, é de 20%. O banco, pertencente ao governo da província, tem 500 agências. No pacote de venda das ações do governo, que continua majoritário, 4,7% ficaram com a IBM. O Citi vai assumir a gestão do banco.

O HSBC, por sua vez, detém 19,9% do capital do Banco de Comunicações - mais um banco pertencente ao governo central, quinto no ranking das estatais - e pretende ampliar sua participação. No Banco de Comunicações, o HSBC assumiu a gestão de seu departamento de cartões de crédito que, em dois anos, já se encontra entre os três primeiros da atividade. Como o crédito ao consumidor não é prática generalizada na China, o cartão de crédito passou nos últimos três anos a ser o instrumento de financiamento do consumo da classe média. E é a conquista dessa fatia de mercado um dos objetivos principais dos estrangeiros.

Finalmente, há regras claras. Há marco regulatório, precisamente como queriam os bancos e exigia a OMC. Mas a verdade é que, em 1977, quando Deng Xiaoping anunciou seu "socialismo de mercado", e não se pensava em segurança jurídica - lei de falências ainda não existe - a banca internacional começou o deslocamento para a China, na esteira de um turbilhão de empresas de Estados Unidos, Europa, Japão, Austrália, Hong Kong, Taiwan, e até Brasil, que decidiram estar onde o crescimento está. Os marcos regulatórios chegariam quase 30 anos depois.

A quarta reportagem da série "O império globalizado'' será publicada na próxima edição