Título: Os alicerces que sustentam o Partido dos Trabalhadores
Autor: Roma, Celso
Fonte: Valor Econômico, 06/12/2006, Opinião, p. A12

Há um consenso de que as organizações partidárias no Brasil são amórficas e sem vida. Essa percepção tem fundamento em muitos fatos da política nacional. A infidelidade assola a maioria dos partidos porque seus filiados costumam migrar de uma legenda à outra. Os líderes tampouco podem contar com o apoio incondicional dos seus correligionários. A disciplina partidária na Câmara dos Deputados é baixa quando comparada a de países parlamentaristas ou, até mesmo, de presidencialistas, como México e Argentina. O oligarquismo é um traço característico dos partidos. Seus órgãos geralmente são comandados por um grupo de líderes e seu regulamento restringe a participação dos demais filiados. Entretanto, nem todos os partidos padecem dessas enfermidades.

O Partido dos Trabalhadores (PT) ainda constitui exceção no sistema partidário brasileiro. Em que se pese a transformação ideológica pela qual passou nos últimos anos, a legenda consegue conciliar ativismo da militância com hierarquia, fidelidade e disciplina, aproximando-se, na prática, de um modelo de partido idealizado pelos especialistas. Ela funciona basicamente com as mesmas regras de recrutamento e de convivência que foram concebidas por seus fundadores, conforme demonstra a última versão do seu estatuto, aprovada em 2001 numa reunião do Diretório Nacional.

A princípio, filiar-se ao PT se apresenta mais fácil do que é na realidade. Qualquer cidadão com idade igual ou superior a dezesseis anos pode se filiar ao partido (art. 4º) e se agrupar em tendências internas (art. 233), sendo desnecessária qualquer aprovação prévia dos demais filiados. Excepcionalmente, mandatários e políticos de notória expressão submetem-se a um parecer da Comissão Executiva Estadual ou Nacional (art. 5º). Essa facilidade de filiação é ilusória, pois, ao mesmo tempo, outros artigos da sua normativa estabelecem princípios rígidos de convivência, alguns deles exclusivos do partido.

A hierarquia entre os diretórios do PT se estabelece por um conjunto de mecanismos de controle. Há uma relação de dependência entre as instâncias partidárias: a territorial se subordina à municipal, esta à estadual e as estaduais à nacional (art. 17). As estratégias de coligação partidária devem ser condizentes com a diretriz estabelecida pela Comissão Executiva Nacional, que supervisiona as demais comissões. Nenhuma decisão em nível local pode seguir em frente sem a anuência de sua respectiva instância superior. Os atos de indisciplina de qualquer membro são puníveis por um conjunto extenso de penalidades individuais ou coletivas (art. 208), variando desde uma censura pública até o desligamento do partido (art. 209-210). O uso recorrente desses instrumentos de punição inibe os filiados a descumprirem as normas estatutárias.

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Diferentemente de outras grandes siglas, a direção e a presidência dos diretórios do PT são eleitas pelo voto direto dos filiados (art. 35). Os pré-candidatos são escolhidos por meio de prévias entre o conjunto de filiados da sua circunscrição eleitoral (art. 135), sendo garantido o direito de apresentação e debate de propostas. O Processo de Eleições Diretas ocorre em nível local, estadual e nacional, reforçando a necessidade de os filiados estabelecerem redes de comunicação entre si para vencerem as disputas internas. Esse direito de votar e de ser votado está condicionado a uma contribuição monetária, que é obrigatória para filiados que ocupam cargos eletivos (art. 171), prestam assessoria ou exerçam cargo de confiança (art. 172). Os correligionários têm direito à voz e a voto e interferem na escolha das diretrizes a serem adotadas pelo partido.

Existem regras no PT que incentivam partidarismo em detrimento de personalismo. Para disputar uma candidatura, o filiado deve cumprir exigências específicas, como a assinatura do "Compromisso Partidário do Candidato Petista" (art. 128). O partido é o único que prevê interferência no formato e no conteúdo das peças publicitárias da campanha eleitoral dos seus candidatos. As candidaturas majoritárias e a legenda devem ser destacadas na propaganda veiculada nos meios de comunicação (art. 151). O partido concebe o mandato eletivo dos filiados como sendo partidário (art. 66), solicitando que, em caso de expulsão, eles renunciem ao cargo que porventura estiverem exercendo (art. 14), uma medida disciplinar em desacordo com a legislação eleitoral em vigência.

Esse regulamento faz com que o PT funcione bem quer na oposição ao governo, quer na situação. Comparado às grandes legendas, o partido sempre obtém as menores taxas de deserção e as maiores taxas de disciplina. Seu quadro de filiados cresceu linearmente ao longo do tempo. Nem o fato de o partido ocupar a Presidência da República estimulou salto de filiação. Na última legislatura, os deputados migrantes, ainda que interessados em ingressar em um partido da base governista, preferiram se filiar ao PL, PTB ou PP, recusando-se a pagar o ônus de pertencer à organização petista. É um fenômeno raríssimo um parlamentar petista entrar em outro partido. Além disso, nas votações nominais do plenário da Câmara, os petistas acatam de maneira rigorosa o encaminhamento de voto do seu líder, faltam menos e pouco se abstêm. O partido pode, seguramente, contar com a disciplina dos seus filiados. Mesmo no longo período que amargaram na oposição, os petistas mantiveram-se fiéis e disciplinados. Os demais partidos, em contraste, toleram certo grau de desunião de seus filiados, dificilmente castigam aqueles que descumprem as orientações dos líderes e diminuem de tamanho quando estão alijados da máquina do governo.

Com relação ao aspecto organizacional, o PT continua servindo de referência aos demais partidos, uma vez que seus filiados têm melhor desempenho nos quesitos hierarquia, lealdade e disciplina. A legislação partidária em vigor no país, considerada erroneamente por muitos como permissiva, orienta-se por esses valores. Restam aos líderes dos partido afligidos pelos males da desunião e do marasmo zelarem pela observância do seu estatuto e incentivarem a participação dos filiados em suas atividades.

Celso Roma é doutor em ciência política pela USP, membro do Grupo Estudos Legislativos do CEBRAP e especialista em partidos e eleições.