Título: Chávez e o socialismo novo do Século XXI
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 04/12/2006, Internacional, p. A10

Alguns quilos mais gordo do que em sua primeira vitória eleitoral, há oito anos, mas com a mesma energia de quem pelo menos três vezes por semana corre cerca de uma hora no Palácio Miraflores (sede do governo) e se entope com até 30 xícaras de café por dia, contrariando as advertências que recentemente lhe fez seu médico pessoal, o presidente Hugo Chávez Frías chegou às 11h25 da manhã de ontem para votar em uma escola próxima do centro de Caracas. "Merda, ele sempre quebra o protocolo", bradou um segurança que desde cedo o esperava em 23 de Enero, bairro que, embora a menos de cinco minutos de Miraflores, é tomado por cortiços e tem várias ruas com esgoto a céu aberto.

Chávez chegou ao local de votação dirigindo o próprio Fusca vermelho que ganhou, no mês passado, como presente de antigos colegas das Forças Armadas. Distribuiu abraços, bateu continência para os mesários. Em menos de três minutos, pressionou a sua imagem na tela eletrônica, imprimiu o recibo de votação com seu nome (depositado numa urna manual) e deixou a marca do dedo mínimo nas atas de controle da corte eleitoral - um inusitado processo que desperta suspeitas em parte da oposição.

Em seguida, respondeu três perguntas da imprensa estrangeira. "Tem que ser rápido porque, quando Chávez fala ao vivo na TV, as filas não andam", orientou o ministro de Comunicação e Informação, Willian Lara. O presidente falou o tempo suficiente para dar seus recados: conclamou "os derrotados" a aceitar os resultados, ter "maturidade política" e "não pôr o processo de votação em dúvida". Pediu a todos que lessem o artigo mais recente do intelectual americano Noam Chomsky na imprensa venezuelana, exigiu respeito dos EUA ao direito internacional e foi embora no mesmo Fusca, sem explicar o que significa o "fim da etapa de transição" rumo ao socialismo do Século XXI, se estiverem corretas as bocas-de-urna do comando de campanha chavista, indicando vitória com 73%.

O grau de radicalismo do novo governo de Chávez, se ele confirmar seu favoritismo e reeleger-se para um mandato de seis anos, conforme indicam todas as pesquisas na Venezuela (até o fechamento desta edição, o Conselho Nacional Eleitoral não havia divulgado nenhuma prévia da votação), é uma verdadeira incógnita. Freqüentemente, quando precisa tomar uma decisão importante, Chávez determina uma pausa nas reuniões com seus auxiliares próximos e se tranca por meia hora em um cômodo do palácio presidencial, para refletir sozinho - quando não admite interrupções. Apesar de ser um homem de convicções firmes, o presidente venezuelano também atua como um árbitro de dois grupos com diferenças sutis, mas importantes, que competem para fazer a cabeça do "Comandante", como o chamam até os ministros mais íntimos quando querem paparicá-lo.

O primeiro grupo defende um socialismo "light", com pesada intervenção do Estado na economia, mas participação privada em setores "não-estratégicos". Lideram essa corrente o vice-presidente José Vicente Rangel, um simpático advogado de 77 anos conhecido como duro negociador político, o ministro de Finanças, Nelson Merentes, e o diretor do fisco, Vielma Mora, admirado por Chávez pelo bem-sucedido trabalho de combate à sonegação nos últimos anos.

O segundo grupo é menos moderado e defende, sempre nos bastidores, aprofundar o "processo revolucionário" que acredita estar conduzindo. É uma corrente ampla, com expoentes que vão desde o chanceler Nicolás Maduro ao presidente da PDVSA, Rafael Ramírez, filho de um ex-guerrilheiro esquerdista nos anos 60 e primo do terrorista Ilich Ramírez Sánchez, o "Chacal", condenado na França. Também fazem parte do grupo a presidente da Assembléia Nacional, Cilia Flores, e o jornalista e ex-deputado constituinte Guillermo García Ponce, que em setembro de 2003 fundou, com as bênçãos de Chávez, o único jornal "pró-revolução" do país, o "Diario Vea".

Em boa medida, os rumos do país serão definidos pela corrente que for mais competente em convencer o presidente. Quem conhece bem Chávez diz que ele se situa ideologicamente mais perto dos radicais, mas é um líder extremamente pragmático para manter-se no poder, o que o faz aproximar-se dos moderados. As mudanças constitucionais ainda são bastante incertas, mas devem ir além da permissão de reeleições indefinidas para o cargo de presidente, a única alteração que o próprio Chávez admitiu publicamente. "Vamos fazer reformas que abrangem questões políticas, econômicas e sociais", afirmou ao Valor a deputada Cilia Adela Flores, sem, entretanto, entrar em detalhes.

Questionada se o direito à propriedade privada estará assegurado, a líder do Congresso unicameral garante que sim. "Isso (os boatos de expropriações) é o que diz a oposição que quer satanizar o presidente", rebateu Flores. "Agora há estabilidade jurídica e se pode ver como efetivamente o setor empresarial cresceu neste governo."

Uma pesquisa do instituto independente Datanálisis aponta que, mesmo entre os votantes de Chávez, 64% não vêem Cuba como modelo econômico e político para a Venezuela. No entanto, do total de eleitores entrevistados - não importa se do governo ou da oposição -, 47% paradoxalmente dizem preferir o socialismo. Apenas 13% se declararam a favor de desapropriações de terras, imóveis ou veículos e 76% acham que as empresas privadas colaboram com o desenvolvimento e o bem-estar do país. Como ler dados tão aparentemente contraditórios?

Luis Vicente León, sócio-diretor do Datanálisis e um dos mais respeitados cientistas políticos venezuelanos, acredita ter chegado à interpretação mais correta. Nas pesquisas qualitativas, o instituto identificou que os eleitores relacionam o capitalismo com quatro valores: progresso, riqueza, desenvolvimento e liberdade. O socialismo está relacionado, na opinião dos entrevistados, com as missões [programas sociais] de Chávez e a distribuição da renda proveniente do petróleo - e nada além disso.

"As pessoas não são contra o capitalismo e, muito menos, contra a cultura americana", diz León. Para ele, o mais provável é que Chávez, consciente da relação utilitária de seus eleitores com ele, opte por um socialismo moderado. Como é esse modelo? "Para os chavistas, isso significa tanto Estado quanto seja possível, tanta iniciativa privada quanto seja necessário", conclui.

Na avaliação de José Guerra, ex-economista-chefe do Banco Central da Venezuela, se Chávez confirmar seu favoritismo, pode-se assistir ao aumento da presença estatal na economia. "O Estado já possui petróleo, alumínio, bauxita, a venda de alimentos, uma empresa de turismo, uma fábrica de veículos militares, indústrias de fuzis, cimento, processadoras de tomate, banana, algodão, leite", critica Guerra. Em 2004, o governo de Chávez criou uma companhia aérea estatal (Conviasa). Na semana passada, inaugurou uma montadora em parceria com o governo do Irã. Guerra teme ainda o incremento de ações populistas e a desinstitucionalização. "Até a entrega de uma bolsa de estudos quem faz hoje, na Venezuela, é o presidente da República", diz.