Título: Venezuela já espera desvalorização após boom de consumo
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 01/12/2006, Internacional, p. A11

Comprar um automóvel na Venezuela, hoje em dia, não é tarefa fácil. Em qualquer concessionária, a fila de espera para a entrega de um veículo zero varia de quatro a dez meses, não importa se é um modelo econômico ou um carrão de luxo, tal o crescimento da demanda. Nas empresas aéreas que fazem o trajeto Caracas-Miami, todos os vôos estão praticamente lotados até meados de janeiro. Não sobram assentos nem na classe executiva. Para morar juntos, os noivos vivem o dilema de adiar o casamento ou enfrentar a disparada no preço da moradia: o valor do metro quadrado de um apartamento na capital, Caracas, aumentou 20% de janeiro a novembro.

Prestes a completar três anos de forte crescimento da economia, sustentado pelos altos preços do petróleo e pela expansão descontrolada dos gastos públicos, o país vive uma febre de consumo que remete à euforia da "Venezuela Saudita" dos anos 70. A elite recebe a companhia de uma classe média emergente que, na última segunda-feira, congestionava os corredores do elegante shopping center Sambil, a meca dos novos ricos ávidos por bolsas Louis Vuitton e canetas Montblanc. Com o comércio projetando vendas 30% maiores do que no Natal passado, a administração do Sambil já esticou o horário de funcionamento do shopping para das 9h às 23h.

Os economistas locais, quase em uníssono, advertem: o crescimento econômico não tem nada de sustentável e corre o risco de queda abrupta em 2007. Uma desvalorização do bolívar, controlado pelo governo em 2.147,3 por dólar, é tida como inevitável - só resta saber quando e com que intensidade ocorrerá. No câmbio paralelo, a moeda americana subiu 15% desde o início de outubro e já vale mais de 3 mil bolívares. Qualquer taxista ou dono de loja se oferece para trocar um punhado de dólares.

Enquanto a crise não chega, os venezuelanos sentem o doce sabor da prosperidade. Na agência de viagens Molina, em Palos Grandes, um bairro caraquenho de praças limpas e comércio refinado, a vendedora Verónica Duarte conta que Madri, Aruba e Curaçao têm sido os destinos turísticos mais negociados nos últimos meses. Nenhum deles, porém, supera Miami. "Todo mundo quer fazer compras por lá, mas quem mais busca esse destino são os novos ricos", explica a vendedora. Como ela sabe se são mesmo novos ricos? "Eles não gostam de usar cartão de crédito e pagam US$ 1 mil, US$ 2 mil sempre em dinheiro."

O presidente Hugo Chávez anuncia uma luta revolucionária contra o "império americano", mas raramente os ianques ganharam tanto dinheiro na Venezuela. A rede de lanchonetes TGI Friday´s, que chegou ao país em 1999, pretende abrir mais duas lojas nos próximos meses. Já são oito unidades venezuelanas - e as vendas só perdem, fora dos EUA, para o Reino Unido, Taiwan e Coréia do Sul. As lojas do Friday´s em Caracas fritam mais hambúrgueres do que suas homônimas na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguai juntas.

Montadoras como General Motors e Ford, que disputam a preferência dos venezuelanos, também comemoram. A venda de carros novos neste ano deve atingir 300 mil unidades, dobrando em relação ao ano passado. Para suprir a demanda por veículos zero quilômetro, o governo criou uma montadora de capital misto com o Irã, parceiro com quem Hugo Chávez tem buscado maior aproximação. O próprio presidente inaugurou nesta semana a fábrica conjunta da Venirauto, que produzirá 8 mil automóveis em 2007, no distrito industrial de Maracay.

Um dos motores do consumo da classe média tem sido a inusitada política monetária praticada no país. Os juros da caderneta de poupança estão fixados em 6,5% ao ano, e os certificados de depósito bancário não vão além de 10%. A inflação acumulada em 12 meses, no entanto, atingiu 15,5% em outubro. Guardar dinheiro no banco hoje significa perdê-lo. E por isso os venezuelanos vão tanto às compras.

O governo, no entanto, mantém a taxa básica de juros em patamar bastante baixo para não elevar o serviço da dívida.

Os bônus da dívida pública pagam 6% ao ano, e as Letras do Tesouro, 4%. "Em todos os países do mundo, quando o consumo se eleva de modo insustentável e a inflação está descontrolada, o Banco Central sobe a taxa de juros", diz o economista Orlando Ochoa, professor da Universidade Católica Andrés Bello. "Aqui ocorre justamente o contrário."

Um dos efeitos óbvios deste aquecimento econômico para um país que, desde os anos 70, tem obtido pouco sucesso em diversificar a sua indústria, é o aumento das importações. As compras no exterior totalizaram US$ 8,6 bilhões no terceiro trimestre, recorde absoluto, com expansão de 37% sobre o mesmo período do ano passado. A maior parte foi de bens de consumo.

A sede por importados é tão grande que o humorista de TV Benjamin Rausseo, conhecido como "Conde de Guácharo", chegou a inscrever-se como candidato à Presidência da República com a proposta de construir um "uisqueduto" ligando a Venezuela à Escócia, numa sátira dos hábitos da elite e dos grandiosos projetos de Chávez, como o Gasoduto do Sul, de duvidosa viabilidade. Rausseo alcançou 6% em algumas pesquisas de intenção de voto, mas desistiu da candidatura na reta final da campanha, alegando crise de hipertensão arterial.

Apesar de preocupados com o ritmo das importações, é para o excesso de liqüidez da economia e o uso indevido de reservas internacionais que economistas apontam quando dizem que a bonança está no fim. Eles também ressaltam que a alocação de recursos da PDVSA para obras sociais, em vez de reinvestimentos em exploração de petróleo, fez a produção venezuela estagnar, além de os custos para retirar óleo dos poços atuais ter disparado com a falta de modernização. O governo afirma estar produzindo 3,2 milhões de barris por dia, mas a Agência Internacional de Energia (AIE) refuta o número e garante que não passa de 2,5 milhões de barris.