Título: Energia nuclear opõe Marina e Dilma
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 01/12/2006, Especial, p. A14

O meio ambiente está no banco dos réus. É o vilão do tímido crescimento da economia, apontado inclusive nos discursos do presidente Lula. À frente da pasta que ganha fama de atrasar projetos de investimento, a acreana Marina Silva diz que a vida é assim, feita de contradições. "Não consigo imaginar nenhuma atividade sem que ela gere algum atrito. Senão, não tem energia", brinca. Ela não teme criar outra área de conflito opondo-se frontalmente a um tópico que acaba de entrar na pauta do governo pelas mãos da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef: o plano de ampliar a oferta de energia nuclear no país. "Eu sou contra. Acho que o Brasil tem enorme potencial de resolver seu problema energético a partir da biomassa, da energia eólica, de hidrelétricas", afirma. "Não temos ainda meios seguros para a destinação dos resíduos nucleares. É um perigo".

O Ministério do Meio Ambiente, segundo ela, é protagonista no processo de "destravar" a economia. O órgão está à frente, assegura, do projeto de lei que desatará o nó que trava os licenciamentos ambientais - que estará no pacote de medidas que o governo federal quer enviar ao Congresso em fevereiro. Trata-se da regulamentação do artigo 23 da Constituição. A intenção é especificar as competências dos três níveis de governo quanto às exigências ambientais de cada projeto. Isso evitará que o Ibama perca tempo com questões menores, enquanto tem de arcar com grandes projetos, como as usinas do Madeira e Belo Monte, a pavimentação da BR-163 ou a transposição do rio São Francisco. Espera-se, também, que a iniciativa reduza as ações judiciais que paralisam os licenciamentos.

Vestindo terno marrom e usando um colar com semente de jarina, o chamado "marfim da Amazônia" - jóia que ela mesmo fez - a ministra posou para a foto da entrevista com constrangimento. "A última coisa que nós temos aqui é tempo para ficar posando", justificou. "Aqui é o tempo todo uma cobra pelo rabo, um boi pelo chifre e um leão pela juba. E com todo cuidado, porque senão o Ibama..."

Marina concedeu a entrevista durante 40 minutos, antes de ir ao aeroporto rumo a Porto Alegre para participar de um seminário . Acabou perdendo o avião - um vôo comercial - e a agenda. Mas manteve o bom humor e comentou o que considerou uma "vitória do bom senso" ao celebrar a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto de lei que protege e regula o uso da Mata Atlântica, uma antiga reivindicação ambiental que está na pauta há mais de 14 anos. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O meio ambiente está sendo acusado de manter o país na retranca do desenvolvimento.

Marina Silva: O termo acusado é interessante. Porque entre ser acusado e ter provas há um grande caminho. Mas é o contrário. A destruição dos recursos naturais e da biodiversidade é que poderá levar à perda de boa parte do nosso PIB. Somos um país em desenvolvimento que precisa gerar emprego, ter condições de vida para as pessoas. Este é o nosso objetivo. Mas os problemas que afetam nosso país há décadas não são única e exclusivamente ligados ao meio ambiente.

Valor: Mas e a fama, ministra?

Marina: Não é de agora. Desde que iniciamos a nossa gestão e colocamos que meio ambiente iria ser uma política transversal a todos os setores de governo, criou-se um estranhamento. Meio ambiente sempre foi visto como o setor que mitiga os problemas, nunca como aquele que vai ajudar a planejar para que se tenha o mínimo a ser mitigado. É um processo novo e não sei se a discussão está sendo feita de forma invertida. Quando chegamos aqui tínhamos 45 empreendimentos do setor elétrico com problemas judiciais. Hoje, da responsabilidade do Ministério só temos quatro. A média de licenças anuais, até 2002, era de 140 a 150, agora é de 225 licenças. Então, se aumentou quase 100%, por que é que estão reclamando? Modificamos o processo. Antes o setor de licenciamento do Ibama funcionava de forma precária, com 90% dos servidores contratados temporariamente. O tempo todo ficavam sendo remanejados, não se acumulavam competências, os processos tinham problemas de continuidade. Invertemos a situação. Hoje 90% são efetivos com mestrado, doutorado, com qualificação. Mudamos também a estrutura. Antes era só a diretoria de licenciamento com uma coordenação, hoje temos três, uma para a área de petróleo e gás, outra para transporte e setor elétrico e uma para resíduos e qualidade ambiental.

Valor: Isso dá mais agilidade?

Marina: Mais agilidade e mais capacidade de análise. Por isso que digo - talvez as pessoas estejam reclamando mais da qualidade. E é uma reclamação que não tem base. Se o licenciamento for mais permissivo, e com justa razão o Ministério Público entrar com ação, ou qualquer pessoa da sociedade civil, questionando a qualidade, o projeto vai ser enterrado lá na frente. Quando o empreendedor apresenta um bom estudo de impacto ambiental reduz problemas futuros. E se, ao fim e ao cabo, o processo foi bem feito, ainda que demore um pouquinho a mais, ganha-se porque ele não será judicializado. Talvez as pessoas estejam reclamando porque agora, de fato, não se pode mais fazer o que nós encontramos, empreendimentos que faziam colagens da internet de imagens de rios e de cachoeiras da Venezuela para um Estudo de Impacto Ambiental no Brasil.

Valor: O governo está prometendo enviar ao Congresso, em fevereiro, um pacote de medidas para destravar a economia. Está prevista uma nova regulamentação para a legislação ambiental. Quem está propondo? Quem está fazendo?

Marina: É a regulamentação do artigo 23 da Constituição Federal, um trabalho do Ministério do Meio Ambiente. Foi um trabalho intenso dos últimos anos. Conversamos com parlamentares, governos estaduais, prefeitos, entidades da sociedade civil, setor produtivo, chegamos a um determinado consenso e encaminhamos à Casa Civil. Desde fevereiro está para ser enviado ao Congresso e, espero, será enviado o quanto antes.

Valor: O artigo 23 é o que fala das competências...

Marina: Dos entes federados. Dos Estados, municípios e da União. Era uma necessidade de regulamentação da Constituição de 88 que aguarda desde aquela época para ser regulamentado. Um dos problemas da judicialização, além da questão da qualidade dos estudos, é a questão da sobreposição das competências. O Estado fazia um licenciamento e alguém recorria da decisão, dizendo que tinha que ser o Ibama ou vice-versa. Isso dá insegurança ao empreendedor e ao órgão licenciador.

Valor: Como o projeto agiliza o sistema?

Marina: Quando define claramente as competências de quem tem que licenciar. Por exemplo, grandes empreendimentos são responsabilidade do governo federal, do Ibama. Quando o impacto é circunscrito ao território de um Estado é competência do governo estadual. Os impactos locais são dos governos municipais.

Valor: Mas, na prática, hoje já funciona assim, não é?

Marina: A regulamentação do artigo 23 ainda não aconteceu. E como não aconteceu dizendo claramente o que é de quem, acaba tendo liminares que demoram para ser julgadas e o processo emperra. A partir da clara definição, a judicialização em função do sombreamento não acontecerá mais.

Valor: O Ibama, então, teria mais força, sem tanta interferência do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público...

Marina: São poderes independentes. O Tribunal de Contas fiscaliza a todos nós e o Ministério Público faz a defesa da sociedade naquilo que ele entende. É fruto da democracia brasileira.

Valor: Mas quando o próprio presidente diz que precisa destravar a legislação ambiental...

Marina: Ele disse na terça-feira que não ia mais nominar nenhum dos atores que, digamos assim, estão sendo trabalhados neste processo de fazer com que o país possa crescer. Porque quando ele cita um, segundo as suas palavras, vira bode expiatório.

Valor: A senhora prevê uma ação da Justiça mais parcimoniosa?

Marina: Não questiono decisões da Justiça. São poderes diferentes. A orientação em relação à minha equipe é que aqui nós não dificultamos e nem facilitamos. Exercemos a função pública a partir de uma visão republicana das coisas. Inclusive tivemos a coragem de dar transparência a este processo. Criamos o portal do licenciamento onde os dados são colocados publicamente. Estamos colocando, na página do Ministério, quais os problemas de cada empreendimento e quais os que já têm licença e não começaram as obras.

Valor: A ministra Dilma Rousseff diz que não temos estoque de hidrelétricas licenciadas...

-------------------------------------------------------------------------------- A média de licenças anuais, até 2002, era de 140 a 150, agora é de 225. Então, se aumentou quase 100%, por que reclamam?" --------------------------------------------------------------------------------

Marina: Temos uma lista de vários empreendimentos. É claro que, nesta discussão, as pessoas vão para onde existem problemas. No caso da hidrelétrica do rio Madeira, quando dissemos que precisávamos de mais informações elas eram, objetivamente, necessários...

Valor: Como a senhora vê a adequação entre a obsessão pelo crescimento e a agenda ambiental?

Marina: Não gosto do termo obsessão. Mas, acho que a determinação do crescimento tem que ser a mesma determinação pela proteção ambiental.

Valor: Mas eles não brigam?

Marina: A vida é assim, feita de contradições. O homem precisa preservar, mas precisa usar os recursos naturais. Existe uma contradição nos processos e temos que aprender a lidar com ela. Nos últimos 20, 30 anos, o Brasil evoluiu muito, tem uma excelente legislação ambiental que precisa ser implementada. Temos hoje boas empresas que aprenderam que cumprir a legislação é um bom negócio para sua imagem, empreendedores comprometidos com a sustentabilidade econômica e também do ponto de vista social, ambiental, cultural. O grande desafio é fazer os investimentos econômicos contemplando a proteção do ambiente. Antes se fazia um empreendimento e se tentava mitigar o impacto. Hoje se planejam empreendimentos já incorporando critérios de sustentabilidade. É a visão moderna do processo.

Valor: O embate é normal?

Marina: Não consigo imaginar qualquer atividade sem que ela gere algum atrito. Temos que ter a capacidade e a sabedoria de entender que, para continuar existindo neste planeta, não podemos acabar com os nossos ativos ambientais. Destruir a Amazônia iria levar a um processo de escassez de chuvas em várias regiões do país, que iriam virar deserto. O que é mais rentável? Usar 165 mil quilômetros quadrados de área devastada com novas tecnologias para produzir grãos e boi ou continuar derrubando mais floresta para produzir grãos e bois, acabar com a Amazônia, criar um problema de seca no Sul e Sudeste? O que faremos com os milhões de brasileiros que temos lá se aquilo virar deserto?

Valor: Mas a pavimentação da BR-163 e a pressão da soja não vêm na contramão disso?

Marina: Eu preciso estar na contramão. Alguns segmentos ainda não entenderam isso, que os custos de não fazer correto são maiores do que fazer certo. Quando chegamos aqui havia um consórcio privado, existiam 18 prefeituras e dois governos de Estado prontos para fazer estrada. Colocamos para o Ministério do Transporte e da Integração que a estrada não podia ser feita daquele jeito. Só o anúncio da pavimentação aumentou o desmatamento em 500% naquela região, aumentou a grilagem e a violência. Precisávamos conversar com os diferentes atores, ter um plano de desenvolvimento para a área de abrangência da estrada. Todas as estradas na Amazônia foram feitas sem planejamento e isso leva a uma destruição de 50 quilômetros de um lado e 50 quilômetros do outro. A BR-163 é no coração da Amazônia. Graças a Deus, o centro de governo aquiesceu. Com a coordenação do MMA, 22 ministérios trabalharam, criamos 8 milhões de hectares de unidades de conservação, demarcamos a terra dos índios, combatemos a grilagem. No ano passado, o desmatamento, que crescia 500% em 2002, caiu 91%. A sociedade espera que a estrada seja feita. Já existe a licença para os primeiros 20 quilômetros e a prévia para 800 quilômetros.

Valor: Saíram dados preliminares de queda no desmatamento pouco antes da eleição. O resultado final com todas as imagens analisadas vai ser diferente?

Marina: Espero que, se mudar, seja para melhor.

Valor: Quando se comemorou a queda no desmatamento da Amazônia, o preço da soja estava deprimido. Agora começa a subir de novo. O trunfo não será afetado?

Marina: Não é um trunfo, é uma conquista da sociedade. O desmatamento estava crescendo de forma assustadora. Esta é a segunda maior queda dos últimos nove anos. Aconteceu graças a uma combinação de ação de comando e controle, com variáveis de comércio. Mas eu não pagaria para ver se nós não tivéssemos feito 13 grandes operações da Polícia Federal, prendendo 400 pessoas, sendo cem funcionários do Ibama há décadas envolvidos com casos de corrupção. Se não tivéssemos desconstituído 1.500 empresas criminosas que faziam qualquer tipo de falcatrua para vender madeira de forma ilegal, se não tivéssemos criado 20 milhões de hectares de unidades de conservação, se não tivéssemos parado a grilagem da BR-163... Não teríamos isso se tivéssemos apostado apenas no preço das commodities. Talvez isso seja querer continuar dando sinal trocado, que nós não temos governança em relação à Amazônia. O desmatamento caiu inclusive em regiões onde não tinha a pressão da soja como em várias regiões do Pará, onde a pressão era pela madeira e por ocupar território. Também criamos um sistema de monitoramento por satélite em tempo real.

Valor: E a questão das usinas nucleares, do plano que vem por aí?

Marina: Eu sou contra. Acho que o Brasil tem potencial enorme de resolver seu problema energético a partir das grandes possibilidades de biomassa, eólica, energia renovável, inclusive hidrelétrica, e não precisará lançar mão de energia nuclear. Até porque nós não temos ainda meios seguros para a questão do armazenamento, a destinação dos resíduos. O MMA é contra. Mas é claro que esta discussão fazemos dentro do governo e podemos até ser uma voz solitária, mas vamos levar até o fim, e publicamente também. Eu tenho dito isso.

Valor: E as usinas do rio Madeira? Tem se dito que são questão de Estado. O processo está andando mas é bem polêmico...

Marina: O projeto inicial tinha uma área alagada que foi reduzida oito vezes, previa três usinas que atingiam a Bolívia, não vai ser feita a terceira; o projeto inicial previa eclusas que iriam dar acesso a regiões preservadas do Alto Madeira e isso não vai ser feito. Isso se chama planejamento ambiental e foi uma contribuição antes mesmo do processo do licenciamento. É que as pessoas não vêem o que a gente faz aqui, o tempo todo, para viabilizar de forma correta as coisas.

Valor: Pelo Ibama, as usinas do Madeira saem?

Marina: Nunca me posiciono a priori ou não teria isenção.

Valor: A posição em relação às usinas do Madeira não é tão contundente como na área nuclear?

Marina: E nunca é ideológica. Estou dizendo que sou contra a nuclear porque acho que é um perigo, não temos o que fazer com os resíduos. Em relação ao Madeira ou a qualquer outro empreendimento, não temos nenhuma prevenção a priori.

Valor: E Belo Monte também?

Marina: Não, Belo Monte é um processo complexo que tem que ser analisado no mérito. Se for legal e ambientalmente viável e socialmente justo, isto tem que ser visto no mérito. Até agora, não se conseguiu provar que é assim.

Valor: Qual o futuro que a senhora imagina depois do Ministério?

Marina: O meu? Está inteiramente nas mãos de Deus, eu não planejo. Ainda tenho meus anos de Senado, mais quatro anos de mandato. Depois disso? Nunca planejei ser vereadora, eu só me planejei para ser professora. A política foi um meio para viabilizar meus sonhos, meus ideais.