Título: Qual reforma tributária?
Autor: Dias, Guilherme
Fonte: Valor Econômico, 30/11/2006, Opinião, p. A14

O debate sobre a reforma tributária é recorrente no Brasil. A última mudança ampla do sistema tributário aconteceu através da promulgação da Constituição de 1988. Naquela oportunidade, a reforma tributária ocorreu no sentido de ampliar os mecanismos de tributação, apoiando a expansão da seguridade social e o fortalecimento de Estados e municípios. Passados menos de 20 anos, a profundidade das mudanças ocorridas na economia, na sociedade e na política exige uma reforma também de largo alcance, porém com objetivos distintos. Uma reforma tributária deveria diminuir o peso dos tributos na economia. Um segundo objetivo seria simplificar o sistema, reduzindo custos de administração para o governo e para o contribuinte. Entretanto, as propostas em discussão indicam que estamos longe destes objetivos. O roteiro tradicional do debate sobre a reforma tributária é conhecido.

A União, que arrecada dois terços do total dos tributos, focaliza a reforma na federalização da principal receita dos Estados, o ICMS, deixando intocáveis os tributos federais. É paradoxal, pois o ICMS respondeu por apenas 13% do aumento da carga tributária nos últimos anos, enquanto somente a Cofins representou 26%. Mais ainda: tudo indica que o ritmo de crescimento das despesas de caráter permanente no orçamento federal, como previdência e pessoal, não abre margem para redução de receitas. A elevada carga tributária acaba sendo a única âncora para o cumprimento das metas fiscais.

Por sua vez os Estados imaginam na reforma uma oportunidade de recuperar a "fatia do bolo" perdida ao longo dos anos para a União. Também muitos Estados esperam contar com a reforma para restaurar capacidade de investimentos. Neste contexto, é improvável que a federalização do ICMS seja eficaz para reduzir o ônus tributário. A proposta é sedutora e possui defensores experientes e competentes. As vantagens seriam três: simplificar a gestão tributária, acabar com a "guerra fiscal" entre os Estados e buscar o alinhamento do ICMS a outras iniciativas para redução do "custo-Brasil". Talvez haja ganho de gestão pela unificação da legislação, que dificilmente compensará o risco de aumento da carga tributária embutido na proposta. Explico porquê. Há diferenças expressivas nas alíquotas vigentes do ICMS. Estas diferenças são significativas mesmo em bens e serviços "não comercializáveis", que portanto não fazem parte da "guerra fiscal" associada à atração de investimentos. Exemplos: na gasolina variam entre 25 a 31%, no diesel variam entre 12 a 17%, na telefonia entre 25 a 30%, na energia elétrica residencial entre 17 e 30% e assim por diante. A unificação do ICMS, mesmo com "bandas" para fixação de alíquotas, carrega um "viés de alta", na medida das dificuldades dos Estados com pior situação fiscal. Outro ponto: a "guerra fiscal" tem levado à redução do ICMS em numerosos setores. Na disputa por investimentos e empregos, os Estados têm promovido redução da carga tributária. Portanto, certamente não é o setor privado o interessado na supressão da competição entre os Estados.

Na outra ponta do debate o setor privado clama corretamente por menos tributos, mas nem pensa discutir o caráter obrigatório das contribuições que financiam as entidades empresariais, que oneram os encargos trabalhistas. A comparação é irresistível. Reforma tributária é como ponto de ônibus e delegacia de polícia: todos acham indispensável, desde que longe da própria casa.

-------------------------------------------------------------------------------- Reforma tributária é como ponto de ônibus e delegacia de polícia: todos acham indispensável, mas deve ser longe da sua casa --------------------------------------------------------------------------------

Do ponto de vista técnico, não faltam alternativas para uma reforma tributária. Mas para escrever um roteiro de reforma que leve a resultados positivos para a competitividade e o crescimento da economia há que se observar alguns pontos.

Primeiro: se há risco em qualquer processo de mudança, é razoável que sejam compartilhados na proporção da posição de cada ente federativo. No lugar da mera federalização do ICMS, por que não retomar o projeto de fusão com a Cofins e o IPI, criando de fato um imposto sobre o valor adicionado em bases nacionais, com receitas compartilhadas entre União, Estados e municípios?

Segundo: na ausência de políticas que reduzam o crescimento do gasto público, a reforma dificilmente viabilizará uma redução da carga tributária, correndo até mesmo o risco do contrário. Importante lembrar que não se requer a redução nominal de despesas, mas sim limitação e controle das despesas de caráter permanente em ritmo inferior ao crescimento da economia, como já indicado por muitos especialistas. Sobre este assunto não há originalidade: as principais medidas devem recair sobre a trajetória futura das despesas da previdência social e da folha de pagamentos dos servidores públicos. A insistência ou "mesmice", como querem alguns, em tratar destes dois pontos é porque representam algo em torno de 75% das despesas não-financeiras da União. Também há que se buscar mecanismos de limitação à crescente participação das despesas do Judiciário e do Ministério Público, que nos Estados já supera setores vitais como saúde e segurança pública.

Em resumo, para gerar resultados e não apenas retórica, a reforma tributária deve ser um capítulo de amplo programa fiscal, com mecanismos de controle dos gastos correntes e redução de tributação nos três níveis da federação. Do ponto de vista da economia, as condições são bastante favoráveis. A conjuntura internacional de crescimento e liquidez e a consolidação da estabilidade monetária no plano interno diminuem os riscos inerentes ao processo de mudança. Do ponto de vista político, para que este roteiro seja crível, o exemplo deve vir de quem tem a maior parcela do bolo: a União.

Guilherme Dias é ex-ministro do Planejamento. E-mail: guilherme.dias@terra.com.br