Título: As multas por cartel e a ida ao Judiciário
Autor: Cantergiani, Bruna
Fonte: Valor Econômico, 29/11/2006, Legislação & Tributos, p. E2

São freqüentes as críticas sobre a dificuldade do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) em receber das empresas condenadas por formação de cartel a multa que lhes é imposta, pois estas acabam sempre sendo questionadas no Poder Judiciário. Independentemente do debate sobre se compete ou não ao Judiciário rever o mérito das condenações impostas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), cabe, sem dúvida, ao Judiciário analisar se o processo administrativo seguiu os preceitos legais, bem como se a estipulação da multa foi correta, dentro do que a lei estabelece.

Diante da amplitude do tema, este artigo se limitará a discutir os equívocos que costumam surgir na fixação do valor da multa e que acabam por motivar as empresas a buscarem o Judiciário. Por exemplo, a multa nos casos de cartel (de 1% a 30% sobre o faturamento bruto) está diretamente relacionada com a vantagem auferida pelo suposto infrator, decorrente da atividade investigada. Porém, o Cade muitas vezes deixa de levar em consideração que a multa aplicada nos casos de cartel ou de infração à ordem econômica deve necessariamente seguir os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

A mais surpreendente das decisões do Cade refere-se à apuração da base de cálculo da multa aplicada nos casos de cartel: ora entende ser o faturamento bruto total da empresa infratora, ora o faturamento bruto sobre o mercado relevante (o faturamento advindo da comercialização de determinado produto em determinada região na qual se verificou a incidência do cartel).

É preciso levar em conta que muitas vezes uma empresa tem diversos ramos de atividade e aquele em que há acusação de cartel corresponde a apenas uma pequena parcela de seu faturamento total. Entendo que, ao estabelecer como base o faturamento total da empresa condenada, o Cade fere os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e vedação ao confisco e, conseqüentemente, da legalidade. Tais princípios são, aliás, reafirmados na Lei nº 8.884, de 1994, que em seu artigo 23 estabelece que a multa deve ser calculada em conformidade com a suposta atividade infrativa, sendo proporcional à vantagem econômica alcançada com a suposta infração.

-------------------------------------------------------------------------------- O que se espera do Cade é que mantenha a coerência, sem extrapolar os limites da razoabilidade e proporcionalidade --------------------------------------------------------------------------------

Outra discussão pertinente às multas aplicadas por cartel é aquela referente à exclusão dos impostos (já que são valores não auferidos pela empresa) para se apurar o faturamento bruto para cálculo de multa. O artigo 23 da Lei nº 8.884 dispõe que deverão ser excluídos da base de cálculo da multa os impostos, o que inclui qualquer espécie tributária ou pelo menos todos os impostos assim denominados. O Cade já calculou multas excluindo do faturamento a ser considerado apenas o Imposto Sobre Serviços (ISS) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e, em outras vezes, todos os impostos, desde que assim denominados. Entretanto, para muitos doutrinadores renomados, como Roque Antonio Carrazza, o PIS e a Cofins, que representam em percentagem grande parte dos tributos pagos pelas empresas brasileiras, possuem, apesar de não receberem o nome de impostos, características de imposto, sendo classificado como imposto com destinação, uma vez que o "nomen iuris" não é relevante para a sua classificação jurídica, como determinado pelo próprio Código Tributário nacional (CTN) em seu artigo 4º. Caberia aqui uma longa discussão a respeito que poderia levar a um novo artigo sobre o assunto desvirtuando a questão em tela.

Resta ainda um terceiro ponto a ser abordado, o que demonstra ainda mais a necessidade de recorrer ao Poder Judiciário, especialmente no tocante à correção monetária a ser aplicada sobre as multas. No ano passado, foram diversas decisões nas quais a atualização monetária aplicada, nos moldes do artigo 11 da Lei nº 9.021, de 1995, era a Selic, que não representa índice de correção monetária, mas simplesmente taxa para financiamentos de títulos da dívida pública, instituída pelo Banco Central (Bacen).

É certo que no âmbito fiscal a Selic é utilizada como atualização monetária e juros moratórios, simultaneamente, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no tocante aos tributos pagos em atraso, de modo que não é permitido o uso da taxa de 1% de juros previsto no CTN se utilizada a Selic. A Selic tampouco pode ser considerada como juros compensatórios, caracterizados pela valorização de capital, utilizados em contratos de empréstimos.

Assim, como era de se esperar, o Cade reconheceu recentemente a impossibilidade de utilização da taxa Selic para atualizar e corrigir o faturamento da empresa, pois, embora contenha fator de correção monetária, também contém juros moratórios. Muito embora o Cade tenha reconhecido e aplicado o índice de correção monetário utilizado pelos tribunais federais na atualização de créditos em geral, alterou os valores para utilizar o IPC-A em alguns casos, porém em outros deixou de alterar, prejudicando aqueles que já efetuaram o recolhimento da multa, devendo procurar o Judiciário para pleitear uma possível repetição do indébito relativo à diferença de atualização monetária.

O que se espera, portanto, do Cade, é que mantenha a coerência e sensatez na fixação das multas, sem extrapolar os limites da razoabilidade e proporcionalidade a serem observados pela administração pública. Enquanto isso não ocorrer, o valor das multas continuará exorbitante e arbitrário, e às empresas não restará outra alternativa a não ser recorrer ao Judiciário.

Bruna Cantergiani é advogada do setor tributário do escritório Franceschini e Miranda Advogados

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