Título: Renegociação das dívidas dos Estados chega à mesa de Lula
Autor: Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 28/11/2006, Política, p. A7

Depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva instou a equipe econômica a propor medidas criativas para destravar o crescimento da economia, coube ao prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel (PT), sugerir a mais ousada de todas. Preocupado com a incapacidade do setor público em aumentar investimentos, Pimentel propõe a renegociação da dívida dos Estados com a União por 30 anos, a troca do indexador da dívida - de IGP-DI para IPCA - e, com isso, a redução do percentual de comprometimento das receitas correntes dos governos estaduais com o pagamento das obrigações. Segundo ele, a renegociação aliviaria as finanças dos governos estaduais nos próximos anos e ainda elevaria os recursos disponíveis do governo federal para obras de infra-estrutura.

A idéia de renegociação das dívidas estaduais é polêmica porque, desde 1989, isso já aconteceu quatro vezes. Na última vez (em 1997), o governo aprovou a Lei 9.496, assumindo as dívidas mobiliárias e contratuais de 24 Estados - apenas dois, Amapá e Tocantins, não aderiram à federalização - e do Distrito Federal, além de seus débitos com o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Em troca, os governos estaduais se comprometeram a pagar a dívida em prestações mensais, durante 30 anos.

Ao contrário das renegociações anteriores, daquela vez os Estados concordaram em oferecer à União garantias reais (receitas próprias, como o ICMS) pelo não-pagamento das prestações. Isso praticamente eliminou a possibilidade de inadimplência dos contratos. Definiu-se, na lei de renegociação, que o indexador da dívida seria o IGP-DI e que o saldo devedor da dívida seria corrigido por juros de 6% ao ano.

Para fazer frente aos compromissos que assumiu, o Tesouro Nacional emitiu títulos no montante necessário para cobrir as dívidas dos Estados com seus credores originais. Em outubro deste ano, o estoque da dívida emitida para essa finalidade estava em R$ 260 bilhões, o equivalente a 24,3% da dívida mobiliária federal.

A lei definiu também que os Estados comprometeriam um percentual da sua Receita Líquida Real (RLR) com o pagamento da dívida à União. Os percentuais foram negociados caso a caso, mas, em tese, variam de 11% a 15% da RLR. Alguns governadores reclamam que estão comprometendo mais de 20% de suas receitas. Outra queixa diz respeito ao indexador do saldo devedor.

O IGP-DI é um índice que sofre o impacto das variações da taxa de câmbio, por isso, o estoque da dívida cresceu muito nos momentos de forte desvalorização do real frente ao dólar, especialmente em 1999 e em 2002. Como nos últimos dois anos ocorreu o inverso, ou seja, o real é que se valorizou em relação ao dólar, as reclamações diminuíram, embora governadores eleitos, como José Serra (PSDB), de São Paulo, já tenham manifestado ao ministro da Fazenda, Guido Mantega, o interesse em trocar o IGP-DI por outro índice.

O plano de Pimentel, que, segundo apurou o Valor, já chegou a Lula, é securitizar novamente, por 30 anos, a dívida dos Estados - da renegociação anterior, dez dos 30 anos já foram pagos. O Tesouro emitiria, em duas ou três tranches, novos papéis, desta vez, lastreados nos contratos assinados entre a União e os Estados. Como esses contratos têm garantias reais (as receitas próprias dos Estados), Pimentel acredita que o governo conseguiria melhores condições no mercado para emiti-los. Além disso, aproveitaria o excesso de liquidez do mercado internacional.

"Esses contratos são ótimos porque estão sendo honrados religiosamente. Todos os Estados e Municípios estão adimplentes há mais de dez anos, desde a renegociação. Quem tentou não pagar foi o então governador Itamar Franco e, assim mesmo, pagou porque a União entrou nas receitas estaduais e segurou o dinheiro. O lastro desses contratos é ótimo. Tem garantia real", explica Pimentel, que consultou informalmente agentes do mercado financeiro sobre a proposta. "A União pode, antes de lançar os papéis, contratar as agências de risco para fazer o 'rating' dos títulos. Vai ser um risco baixíssimo."

Com a renegociação, o prazo de pagamento da dívida seria esticado de 20 para 30 anos. O indexador seria alterado, de IGP-DI para IPCA. O mercado, segundo Pimentel, aceitaria essa mudança. "Na prática, é uma troca de dívida. O governo, ao fazer a renegociação, resolveu o problema dos Estados e Municípios, assumiu a dívida e botou isso no cofre. Agora, é o momento de aproveitar a liquidez", diz o prefeito petista.

Com a troca de dívida, a União poderia oferecer aos devedores uma vantagem: em vez de comprometerem 13% de sua receita corrente líquida com o pagamento mensal da dívida, os Estados passariam a pagar um percentual menor, talvez de 10%, diz Pimentel. "Essa diferença o Estado pode usar para fazer investimentos ou pagar outras despesas", observou.

O prefeito reconhece algumas dificuldades para a implementação de sua proposta. Uma delas é que a redução do percentual de comprometimento de receitas com o pagamento da dívida criará um obstáculo para o governo central cumprir a meta de superávit primário das contas públicas. Pimentel alega que, nos primeiros anos, a perda de receita seria compensada pela captação de recursos viabilizada pela nova emissão de papéis.

"A União, com essa operação, anteciparia um recebimento. Se o estoque da dívida é R$ 260 bilhões, a valor presente será menos do que isso. Com a securitização, o dinheiro vai entrar de uma vez só no caixa da União", diz. "Ao antecipar essa receita, o governo federal terá condições de, nos próximos quatro anos, fazer um investimento pesado em infra-estrutura, nos gargalos que hoje impedem ou dificultam que o crescimento de 5% da economia seja atingido."

Pimentel sustenta que um investimento "maciço" em infra-estrutura criaria as condições para o país crescer a taxas de 5% ao ano. "Com esse crescimento, pode esquecer dessa perda de prestação porque a receita futura do governo vai gerar o superávit primário necessário", aposta ele. "O presidente não pediu ousadia? Ousadia é isso. É antecipar o futuro. O desempenho fiscal do governo é bom, mas o custo para o país é muito alto. É preciso ousar."

Por trás da proposta de Pimentel, há também a preocupação em fortalecer os entes da federação, dando a Estados e Municípios margem de manobra para investir e bancar políticas públicas. Ele compartilha dessa visão, por exemplo, com o governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), com quem tem um bom relacionamento.