Título: BC recusa propostas de ex-controladores de bancos quebrados
Autor: Ribeiro, Alex
Fonte: Valor Econômico, 27/11/2006, Finanças, p. C8

O diretor de Liquidações e Desestatização do Banco Central (BC), Antônio Gustavo Matos do Vale, afirma que o encerramento de liquidações extrajudiciais de bancos socorridos pelo Programa de Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) estão levando mais de uma década porque as propostas apresentadas pelos ex-banqueiros não atendem ao princípio de defesa do patrimônio público.

Em entrevista ao Valor, ele descreve como funciona o sistema de garantias dos empréstimos e mostra que, se fossem aceitas as propostas de controladores de bancos liquidados, os ex-banqueiros sairiam desse processo com recursos do Proer.

Nas últimas semanas, o BC vem sendo alvo de bombardeio de controladores de bancos acudidos pelo Proer, de parlamentares de uma subcomissão criada pelo Senado para investigar as liquidações de bancos e até mesmo da Justiça, que encerrou o bloqueio de bens de controladores e ex-administradores do Econômico, entre eles o ex-banqueiro Ângelo Calmon de Sá.

"As vezes as pessoas acham que os controladores são os mais prejudicados (nas liquidações)", afirma Matos do Vale. "Os mais prejudicados são os credores."

A diferença de critérios, no caso do Econômico, pode chegar a R$ 12 bilhões. O Unibanco e o Nacional chegaram recentemente a entendimentos para levantar a liquidação deste último, e fontes dessas instituições vem dizendo de forma reservada que o BC tem atrapalhado o acordo.

"O BC é acusado de não estar querendo levantar as liquidações", diz. "Não é verdade. O BC não está querendo levantar as liquidações da forma que os controladores querem."

Vale disse que até o primeiro semestre do ano que vem o BC deve apresentar um projeto para uma nova lei liquidações bancárias. Ele defende um modelo parecido com o criado pela nova lei de falências - ou seja, o BC interviria no banco com problema e nomearia um interventor para fazer o diagnóstico e apresentar as conclusões para um juiz de direito, que definiria se o banco poderia ter um regime especial para tentar recuperar a instituição.

Valor: As liquidações da crise bancária do Plano Real completam dez anos. Não é muito tempo?

Gustavo Matos do Vale As liquidações que demoram uma década são as que têm recursos públicos do Programa de Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) emprestados. Quando os bancos quebraram, a parte boa, de forma a não prejudicar os clientes com a perda de seus depósitos, foi transferida para um outro banco, em funcionamento. A parte ruim ficou no banco em liquidação. O buraco foi coberto com recursos do Proer ou com o saque a descoberto na reserva bancária. O BC restou como o principal credor da parte ruim dos bancos. O BC tem, portanto, que equacionar seu crédito. Nisso reside a grande dificuldade. As vezes o BC é acusado de não estar querendo levantar as liquidações. Não é verdade. O BC não está querendo levantar as liquidações da forma que os controladores querem. O BC segue a lei, e a lei obriga a receber os créditos.

Valor: Controladores de bancos socorridos pelo Proer estão entrando na Justiça para exigir indenizações. Será que o BC não está sendo excessivamente rigoroso e, assim, criando uma armadilha que vai levar a um prejuízo ainda maior para o contribuinte?

Vale: É preciso primeiro entender quais são essas ações judiciais. As ações que questionam a decretação das liquidações são as que normalmente pedem indenizações milionárias. Questionam a origem, a decretação da liquidação. Não têm nada a ver com o processo de liquidação em si. As ações que existem dentro do processo de liquidação dizem respeito quase que exclusivamente à correção do passivo dessas instituições, suas dívidas. Os controladores entendem que o passivo, as obrigações da instituição, simplesmente devem ser corrigidas pela taxa referencial (TR). O entendimento do BC é que os encargos do Proer devem ser corrigidos pelos juros contratuais limitados à garantia, conforme artigo da Lei de Falências antiga, mantido na nova.

Valor: E qual é a conseqüência prática dessa diferença de opinião?

Vale: De cada R$ 100 em recursos públicos que o Proer emprestou nessas liquidações, R$ 65 cobriram o buraco dos bancos e R$ 35 foram utilizado para comprar títulos que foram dados como garantia. O que defendemos? A Lei de Falência diz que posso corrigir esses R$ 100, mas que só posso receber os R$ 35. Ou seja, os R$ 100 estão pagos com R$ 35. O que controladores dizem? Ele dizem que tem que pagar apenas a correção pela TR, o que significa que eles querem pagar R$ 20 e ficar com os R$ 15 restantes.

Valor: Então alguns controladores estão querendo ficar com recursos públicos do Proer?

Vale: Sem dúvida nenhuma. É esse o ponto de divergência.

Valor: Mas existe algum risco de, se o BC perder essas ações na Justiça, ser obrigado a pagar algo a mais para os controladores?

Vale: O BC não pode ser condenado a pagar alguma coisa a mais. A nossa pendência jurídica é o quanto vou receber por meu crédito. Sou o credor, já emprestei o dinheiro. O dinheiro já está lá. Aí entra a sua pergunta: o BC pode ser acusado de não ter sido flexível? Isso não está presente na discussão. Ao setor público não é dado o direito de ser flexível. Ele só tem um direito: perseguir o que a lei exige.

Valor: Qual é a diferença entre o entendimento do BC o dos controladores?

Vale: Cada caso é um caso. Por exemplo, no caso do Econômico, no balanço do BC tem R$ 17 bilhões de crédito a receber do banco. As garantias estão calculadas em R$ 10 bilhões, numa avaliação que não é muito segura, porque não existe mercado para determinar o valor das garantias. A dívida corrigida da pela TR estaria em torno de R$ 5 bilhões. Então diria que, no caso do Econômico, teria R$ 5 bilhões de diferença entre o que o controlador acha que deve pagar o que deve render as garantias. E uma diferença de R$ 12 bilhões entre o que achamos que o Econômico nos deve e o que o controlador acha que deve.

Valor: Alguns controladores estão tentando - é o caso do Nacional e do Unibanco - buscar entendimento para tentar encerrar esses processos de liquidação. De forma reservada, fontes desses bancos dizem que quem atrapalha é o BC. O BC é o empecilho?

Vale: Para mim é uma surpresa a afirmação de que alguém do Unibanco ou do Nacional tenha dito que o BC está sendo empecilho. Muito pelo contrário. O BC vê com esperança o movimento que tenho tomado conhecimento pela imprensa de que estão trabalhando em um novo projeto para a apresentar ao BC. Em janeiro, o Unibanco e o Nacional apresentaram um projeto no qual as dívidas o Proer eram corrigidas apenas pela TR. Foi respondido oficialmente a eles que o BC entende que as dívidas do Proer devem ser corrigidas de acordo com a Lei de Falências.

Valor: Quer dizer que a proposta previa que o BC não receberia tudo a que tem direito - e que parte dos recursos do Proer ficaria com os controladores dos bancos?

Vale: Não vamos colocar dessa forma. A proposta apresentada não corrigia a dívida com o BC de acordo com a Lei de Falência.

Valor: E qual seria diferença entre a proposta e o que o BC esperava para levantar uma liquidação?

-------------------------------------------------------------------------------- Alguns ex-banqueiros querem embolsar parte dos recursos públicos concedidos pelo Proer" --------------------------------------------------------------------------------

Vale: Nem avaliamos essa diferença. A proposta diz que eles pagam os créditos do BC corrigido pela TR. E nós respondemos: tem que ser corrigido pela Lei de Falências. Mesmo porque essa diferença passaria necessariamente pela avaliação das garantias, o que seria uma seara sem fim. Se a garantia fosse uma Letra Financeira do Tesouro (LFT), não teria o menor problema. Todo dia tem negociação com a LFT e eu sei quanto ela vale. Mas o que vou fazer com um crédito do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), que não tem valor de mercado? Qualquer valor pode ser questionado. A gente quer sair dessa discussão. Entrega as garantias e está pago.

Valor: Até agora não chegou nada de novo sobre o Nacional?

Vale: Tenho conhecimento de que eles estão trabalhando dentro da liquidação, levantando todos os números, para apresentar um projeto ao BC. Então, eu não posso ser empecilho de uma coisa que eu nem conheço.

Valor: A Justiça da Bahia levantou o bloqueio de bens de controladores e ex-administradores do Econômico. Usaram dados do próprio balancete do Econômico, que diziam que o banco é superavitário. Se o banco é superavitário, não precisa bloquear bens pessoais, pois os ativos do banco são suficientes para pagar todos os passivos. A sentença coloca em risco o crédito do BC?

Vale: O BC nunca entendeu que esses balanços eram superavitários. A legislação e o contrato do Proer permitiam que o BC utilizasse uma cláusula transitória, corrigindo os passivos pela TR. O BC sempre usou essa cláusula. Mas nada impedia que um dia ele ajustasse sua contabilidade dentro do critério da correção do Proer, pelos contratos até o limite das garantias. O nosso jurídico nos orientou que essa cláusula transitória não precisava mais ser utilizada. Poderia utilizar a cláusula contratual. Foi o que nós fizemos no balanço de junho. Não é que o BC mudou o critério. Ele usava uma cláusula transitória e passou a utilizar a definitiva. E a Justiça se baseou sua decisão no balancete do mês anterior a essa mudança. Considerou que o balanço era superavitário. Isso é o que imagino que aconteceu, mesmo porque, você sabe, o BC não é parte. A ação corre corre em segredo de Justiça.

Valor: O BC pode ou pretende fazer alguma coisa para reverter essa decisão judicial do Econômico?

Vale: Não posso responder ainda porque as estratégias jurídicas ainda estão sendo definidas. Mas o que posso dizer, do ponto de vista do crédito do BC, é que essa decisão não interfere. Dentro do nosso critério de receber as dívidas do Proer, ficamos satisfeitos se recebermos todas as garantias. Então, evidentemente essa decisão de liberar os bens não prejudica o crédito do BC.

Valor: Poderia eventualmente prejudicar a terceiros?

Vale: Exatamente. Eventualmente pode prejudicar créditos de não-preferenciais. Mas é uma coisa que ainda será avaliada.

Valor: No caso do Bamerindus, houve questionamentos sobre o comportamento do liquidante, não o atual, mas o anterior. O BC apurou isso? Quais foram as consequências?

Vale: O BC fez um processo administrativo e encaminhou as conclusões reunidas para o Ministério Público.

Valor: O Fundo Garantidor de Crédito (FGC) pode participar de uma solução para levantar a liquidação do Bamerindus?

Vale: Tenho esperança que no caso do Bamerindus possamos caminhar num projeto de levantamento da liquidação tendo o FGC como o condutor desse processo. Na medida em que ele é o maior credor do Bamerindus, se continuar dessa forma que está - uma liquidação eterna - o FGC não vai receber nada. A forma que ele tem de defender parte do seu crédito é um projeto onde se crie condições de que o FGC pague ao BC mediante condições. É bom ressaltar que o Bamerindus não tem Proer, lá é só reserva bancária. E onde há reserva bancária a correção é só pela taxa referencial, mesmo porque não tem garantia.

Valor: E no caso do Econômico?

Vale: Não existe nenhuma iniciativa, ao menos por enquanto.

Valor: E no Mercantil?

Vale: Também não. O controlador já está questionando o BC na Justiça e imagino que não tem muito sentido falar em solução administrativa, já que houve a opção de seus controladores de buscar seus direitos na Justiça.

Valor: Controladores de bancos questionam o Proer, dizendo que concedeu superpoderes ao BC. Houve exagero?

Vale: Acho que não houve exagero. Não participei do processo e não tenho condições de avaliar uma ou outra decisão tomada. Mas o conjunto das decisões tomadas naquela época salvou o país, tenho certeza absoluta. Diria que a crise, para que não se alastrasse, exigiu que o BC tomasse medidas urgentes, medidas claras no que poderia ser uma crise bancária de grandes proporções.

Valor: Há reclamações que o BC não é isento nas liquidações, porque é ao mesmo tempo juiz e parte interessada. O que o senhor acha?

Vale: Desconheço qualquer liquidante que tenha dado preferência ao BC enquanto credor. E, se fez, está errado. O BC é um credor preferencial, é evidente, está acima de outros credores, mas está também abaixo de outros. O conflito entre juiz e credor é uma característica da Lei 6.024, a Lei de Liquidações. Imagino que, quando o legislador deu ao BC o papel de juiz, não esperava que ele fosse credor. Hoje temos essa dicotomia. Isso é uma coisa que, sem dúvida, uma Lei de Falências nova tem que enfrentar. Porque hoje o BC é o juiz da liquidação, mas na prática também não é. Todos os seus atos podem ser contestados em outro juízo - e este, sim, é o juiz de verdade. Essa é outra razão pela qual se estende a liquidação ao longo do tempo. Veja o caso da Varig. Está lá o juiz da falência, tudo o que acontece cai no juiz da falência. Então é uma decisão única e incontestável. É evidente que tem tudo para andar mais rápido do que uma liquidação de instituição financeira, que pode ser contestada.

Valor: Como está o projeto da nova Lei de Falências?

Vale: Está sendo discutido internamente pelo BC e esperamos que no primeiro semestre de 2007 o projeto esteja no Congresso. Tem que ser um projeto que dê mais poderes aos credores para que eles possam definir mais claramente como vão receber. Na realidade, eu entendo que - isso é uma posição pessoal - a autoridade monetária tem que ser a mais restrita possível, em benefício dos credores, que são os verdadeiros prejudicados no processo de liquidação. Às vezes as pessoas acham que os controladores são os mais prejudicados, mas não são. Os mais prejudicados são os credores.

Valor: A experiência do Banco Santos tem alguma lição que pode se tirar para esse novo modelo de liquidações bancárias?

Vale: O Banco Santos é um bom exemplo. Primeiro porque é a primeira instituição financeira que entrou no regime falimentar dentro da nova lei de recuperação de empresas, que é uma lei moderna e dá aos credores essa participação nos destinos da liquidação. Hoje temos o juiz da falência, que nomeou um administrador que responde ao comitê de credores. Pode receber os créditos com muito mais velocidade, na medida em que pode transgredir, negociar, pode fazer várias coisas que o liquidante está impedido de fazer.