Título: Loteamento político mina as agências reguladoras
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/01/2005, Opinião, p. A10

As agências reguladoras estão definhando lentamente no governo Lula. Após uma fase de hostilidade explícita, e uma tentativa ainda não de todo coroada de sucesso de restringir suas atribuições, com o envio do projeto que as disciplina ao Congresso em abril de 2004, o governo pode estar perto de sepultar o caráter de independência que deveria caracterizar os órgãos reguladores. As indicações políticas começam a prevalecer no preenchimento dos mandatos que expiram, o que deve ser o início do fim de sua autonomia. A autonomia relativa das agências é uma exigência vital para que elas possam exercer com sucesso a sua tarefa de fiscalizar e regular atividades de interesse público nas quais o próprio Estado é parte interessada. Mas esse ideal das agências trombou com o apetite político, assanhado pela reforma ministerial, e pela necessidade do governo petista de arrumar vaga para companheiros que não foram felizes em seus últimos testes nas urnas. Depois de catapultar para cargos ministeriais alguns petistas ilustres que perderam eleições - em vários casos, um erro que se torna claro a cada dia - repete-se a dose com os órgãos reguladores. Com isso, o governo apenas dá sequência à desnaturalização iniciada com o ato de retirar da presidência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), antes do fim de seu mandato, Luiz Schymura, para substituí-lo por um quadro do PT que, no passado, havia sido contrário à privatização do setor. As agências caíram nas engrenagens do Estado, com suas barganhas políticas, como demonstram as últimas indicações para o preenchimento de cargos. O presidente Lula nomeou para dirigir a Agência Nacional de Águas o ex-líder da bancada da Câmara do PT e ex-prefeito de Piracicaba, José Machado, que não conseguiu se reeleger. Com a saída de Sebastião do Rego Barros da direção da Agência Nacional do Petróleo, foi indicado como interino o ex-deputado do PC do B Haroldo Lima. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) escapou do garrote político por interferência da ministra de Energia, Dilma Rousseff, segundo o jornal "O Globo". Para o cargo de diretor-geral foi nomeado o engenheiro Jerson Kelman. Uma das vagas na diretoria da Agência Nacional de Transportes Terrestres será ocupada por José Cirilo, que preside o PT do Ceará e foi castigado pelas urnas ao tentar se candidatar a governador em 2002. Na Anatel, será diretor interino Elifas Gurgel do Amaral, ungido pelo ministro das Comunicações, Eunício Oliveira. Com a contaminação das agências pelo vírus das escolhas primordialmente políticas, o processo de seleção tende naturalmente a mergulhar na penumbra das barganhas e a perder a transparência que, mal ou bem, o preenchimento de cargos vinha tendo. Em princípio, haveria listas múltiplas e públicas que seriam submetidas ao presidente da República. Ao que tudo indica, o presidente tem sancionado nomes de sua preferência, para respeitar acordos ou preferências políticas - um "prato feito" que não condiz com a praxe da existência de candidatos prévios e conhecidos. É um enorme retrocesso, se a isso for acrescentado que a pré-seleção tem sido feita em gabinetes ministeriais, onde ex-assessores e secretários de preferência de ministros parecem ter a primazia na indicação para os cargos. Quando as agências foram criadas, havia na disputa um número razoável de técnicos competentes, sem parentescos políticos vitais. Ao tomar de assalto as agências e domesticá-las com a nomeação de agraciados políticos, o governo está se antecipando ao marco legal que propôs ao julgamento do Congresso. A idéia inicial do governo Lula era acabar de vez com a autonomia das agências. O projeto de lei amenizou um pouco a primeira posição, mas a tentativa de impor restrições significativas aos órgãos reguladores continua de pé. Ajeitou-se os mandatos dos diretores, antes não-coincidentes, de forma a que o presidente da República possa, no segundo ano de seu mandato, substituir todos os cargos importantes das agências. Além disso, elas perderão poder para os ministérios, que definirão as licitações, suas diretrizes, metas e prazos. Muitas vezes o poder licitante é parte interessada na licitação, mas o governo quis enfeixar em suas mãos todas as prerrogativas, em vez de corrigir apenas omissões mais flagrantes, que permitiram no passado que as agências ocupassem o vácuo deixado pela inação do Executivo. Antes mesmo de perder terreno legal, porém, as agências já estão sob o risco de total desfiguração pelo loteamento político. Resta torcer para que o Congresso restabeleça sua autonomia e defina claramente suas atribuições.