Título: Cautela para ampliar a ajuda
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 19/01/2005, Opinião, p. A11

Devemos apoiar a duplicação da parcela de PIB gasta pelos países mais ricos do mundo em ajuda ao desenvolvimento? Se fossemos convencidos de que isso acarretará uma diminuição considerável nos níveis de pobreza e de doenças, a resposta teria de ser "sim". Se, por outro lado, acreditássemos que ela seria desperdiçada, a resposta precisaria ser um "não" igualmente sonoro. A tarefa de convencer o público de que estamos tratando da primeira opção, não da última, é o obstáculo que os defensores da ajuda adicional precisam superar. Trata-se, em particular, do obstáculo que o relatório das Nações Unidas sobre o desafio de cumprir as "metas de desenvolvimento do milênio" precisa superar.* Será que consegue? Apenas até certo ponto, essa é minha resposta. Devo começar declarando um interesse, ou melhor, dois. Felizmente, mais conflitam do que se reforçam. O primeiro é a minha admiração de longa data pela inteligência e a paixão de Jeffrey Sachs, da Universidade Columbia, o espírito animador do relatório. O segundo é minha experiência pessoal de assistência ao desenvolvimento, no Banco Mundial. O primeiro me faz querer acreditar, ao passo que o segundo me compele a questionar. O relatório começa com o comprometimento global às oito metas de desenvolvimento do milênio. Entre elas, reduzir à metade a proporção de pessoas em condições de miséria extrema; implementar educação primária universal; e parar, para em seguida reverter, a disseminação da Aids. Lamentavelmente, "vastas regiões estão muito distantes da rota" para cumprirem as metas. "A África subsaariana, de forma mais dramática, está envolta em uma espiral decrescente de Aids, malária recorrente, queda na produção de alimentos por pessoa, deterioração nas condições dos abrigos e degradação do meio ambiente". O que, então, precisa ser feito? A resposta, como indica o relatório da ONU, é uma grande campanha de investimento financiado pela ajuda, concentrada pesadamente na África. O argumento, nesse caso, é que "quando indivíduos e economias inteiras carecem até mesmo da mais básica infra-estrutura, serviços de saúde e educação, as forças de mercado por si só pouco podem realizar. Famílias e economias inteiras permanecem presas num estado de pobreza e não conseguem colher os benefícios da globalização". Tanto os programas de desenvolvimento como o seu financiamento atuariam no sentido contrário das metas, não adiante, a partir dos recursos disponíveis. Cada país em desenvolvimento produziria uma estratégia de desenvolvimento nacional suficientemente ambiciosa para atingir os objetivos, que os doadores, por sua vez, passariam a financiar de bom grado. O que esses programas deveriam conter? Expansão ambiciosa das atividades do governo, é a resposta curta. "Combater a fome, por exemplo, requer treinar agricultores, fornecer fertilizantes, melhorar estradas e serviços de transporte, gerenciar os recursos hídricos com maior eficácia, fornecer boa nutrição, e muitas outras coisas. Há listas semelhantes para a saúde, educação, água, condições sanitárias, gestão ambiental e outras áreas relevantes. Implementar o conjunto pleno de intervenções e políticas consumirá tempo e trabalho ao longo de muitos setores." Além disso, a "escalada" dos programas existentes ou planejados, para atender as metas, exigirá uma ajuda maior e melhor distribuída. A parcela necessária da renda nacional dos doadores precisará aumentar de 0,23%, em 2002, para 0,44%, no próximo ano, e para 0,54%, até 2015. Isso significará aumentos particularmente maiores na ajuda procedente dos EUA e do Japão. Para muitos recipientes de baixa renda, a ajuda poderá alcançar 20% a 30% da renda nacional e financiará dois terços dos gastos públicos.

É essencial que os recursos adicionais não apenas sejam usados, mas aparentem estar sendo usados de forma toleravelmente satisfatória

Então, como devemos responder a essa análise? Com a aceitação dos objetivos amplos e questionamentos sobre os meios, seria a minha resposta. Ninguém poderia argumentar contra a eliminação da privação, a devastação causada pela doença, a melhora nas condições das mulheres e a ampliação das oportunidades educacionais. É igualmente impossível argumentar contra a ajuda adicional, se ela ajudasse a alcançar essas metas. Para os países ricos do mundo, as quantias são triviais sob qualquer parâmetro. Tenho pelo menos quatro preocupações. Primeiro, as transformações no comportamento dos países recipientes e, particularmente, dos países que ficaram mais para trás, tanto das metas como dos demais países em desenvolvimento, são extensas demais para serem confiáveis. A proposição de que mudanças dessa magnitude serão vistas por toda a África em uma década excede qualquer crença. Segundo, a escalada das intervenções existentes para cobrir países inteiros não pode ser a proposição simples que o relatório pretende. De onde virão todos os médicos, enfermeiras, professores, engenheiros, pessoal técnico de manutenção, funcionários públicos e assim por diante? E como podem organizações frágeis dar conta de uma expansão tão ampla naquilo que se considera, na história das organizações, breves períodos? Terceiro, onde estão as trocas de objetivos entre os países e no seu interior? Deverá o mundo, por exemplo, se concentrar em superar metas em países com potencial maior, ou se concentrar em países com obstáculos sociais e políticos maiores para a obtenção do sucesso? Da mesma maneira, por que uma certa data precisa ser sacrossanta? Não seria muito mais importante se firmar na direção certa? Finalmente, onde estão os incentivos para alcançar o desejado progresso socioeconômico, os incentivos para governos, indivíduos e empresas? A história do pensamento sobre o desenvolvimento vem testemunhando um distanciamento da crença de que o investimento determina resultados, na direção de uma apreciação do poder dos incentivos para se determinar investimento eficaz. A abordagem neste relatório inverte essa abordagem. Temo que seja um erro. Os autores do relatório podem responder que estou procurando pelo em ovo. Discordo. Se a tentativa de consumir vastos aumentos proporcionais em ajuda externa sobrecarrega os serviços governamentais, o desperdício poderá ser imenso. Se, além disso, os governos não se ativerem às prioridades planejadas, a reação no exterior também poderá ser ampla. É essencial, para a eficácia da ajuda externa no local e também para a aceitação política da ajuda no exterior, que os recursos adicionais não estejam apenas sendo usados, mas que aparentem estar sendo usados de forma toleravelmente satisfatória. Para que esse novo esforço de expandir a ajuda funcione, precisará ser introduzido seletivamente e com cautela. Se isso significa que fracassamos em atingir as metas do milênio, que seja. Uma operação cuidadosa, que gere melhorias sustentadas, será imensamente preferível a uma expansão dramática que acabe em caos e decepção.