Título: Carreira deslanchou no Brasil da inflação
Autor: Marli Olmos
Fonte: Valor Econômico, 19/01/2005, Empresas &, p. B3

Certa vez, perguntaram ao vice-presidente do grupo Renault, Patrick Faure, também presidente da Renault Fórmula 1, se a empresa não pensava em ter um piloto de F-1 brasileiro. "Vamos ter, mas é um presidente brasileiro", respondeu o executivo. A partir de maio, Carlos Ghosn, que pilota a japonesa Nissan, assumirá o comando da Renault, acumulando o cargo nas duas montadoras. As histórias que contam a respeito de Ghosn pelo mundo costumam descrevê-lo como "descendente de libaneses com formação francesa nascido no Brasil". Reduzem sua origem à época anterior aos seus cinco anos de idade. Não é verdade. Ghosn fala português fluentemente. O executivo fez questão de conduzir a entrevista concedida ao Valor nessa língua, liberando o trabalho de acompanhamento da assessoria nos Estados Unidos. Falar português e conhecer o Brasil contaram pontos para que ele conseguisse o primeiro emprego numa grande companhia, a Michelin, ponto de partida para a escalada que parece não ter limites. Quando havia recém se formado na Escola Politécnica de Paris, em 1978, Ghosn recebeu um telefonema da direção da Michelin, que buscava um engenheiro que falasse português, conhecesse o Brasil e tivesse formação francesa para assumir o comando do projeto da fabricante de pneus no país. Essa história é contada no livro "Cidadão do mundo", que Ghosn escreveu com a ajuda do jornalista francês Philippe Riès. "Parece desafio quase impossível comandar a Renault, a Nissan, continuar avançando nos Estados Unidos e ainda pensar no Brasil; sei que ele quer dar uma atenção ao Brasil" - disse Patrick Faure ao Valor. "Mas Ghosn está envolvido com a Renault há muito tempo", completa. Mas nada nunca foi fácil na vida de Ghosn. Atraídos pelos negócios com extração de borracha, Jorge e Rose - ele libanês e ela nigeriana, filha de libaneses - foram para Porto Velho, Rondônia, onde o filho, Carlos Ghosn, nasceu, em março de 1954. O pequeno Carlos ficou doente, supostamente por água contaminada. A família decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Quando o garoto completou cinco anos, a família foi para o Líbano, onde Ghosn permaneceu até os 17, estudando em escola para jesuítas. O jovem gostava de história, geografia e línguas, mas não mostrava nenhuma vocação muito sólida. Adorava brincar com um jogo chamado Risco, que mostrava o mapa mundi. Era um aluno brilhante, mas indisciplinado, o que preocupava a mãe. Rose era pragmática e tinha muita disciplina. Um ano atrás, ao receber um prêmio no Rio de Janeiro, Ghosn atribuiu à mãe grande parte da sua obstinação. Ghosn deixou o Líbano antes da guerra civil de 1975. Os pais, para quem a educação dos filhos justifica sacrifícios, queriam que ele estudasse no exterior. Talvez influenciado pela mãe, uma verdadeira francófila, Ghosn seguiu para Paris, aos 17 anos. A família voltou para o Rio de Janeiro. Ao receber a proposta da Michelin para ir para o Brasil, em 1978, o jovem engenheiro casou-se com Rita, que ele havia conhecido em Lyon, também filha de libaneses. O Brasil foi um campo de provas para a prática da liderança em clima de instabilidade econômica. Com taxas de inflação de 1.000% ao ano, Ghosn teve de mostrar serviço aos franceses em meio aos planos Funaro e Cruzado. A visita de François Michelin, comandante da indústria de pneus, ao Rio, definiu o destino de Ghosn. Ao ver os resultados, o escalou para salvar a operação da companhia nos Estados Unidos. Ghosn fez uma promessa aos país: voltaria ao Brasil a cada Natal. O pai faleceu em 2002, mas a promessa continua sendo cumprida. Ele passou o último Natal em Itatiaia com a mãe e as duas irmãs que vivem até hoje no Rio. Já com um filho nascido no Brasil, Ghosn começou, então, o novo trabalho de recuperação da Michelin na América do Norte em 1990.

Falar português foi determinante para entrar na Michelin, ponto de partida para a escalada profissional

Em 1996, a Renault, montadora francesa que estava sendo parcialmente privatizada, começou a reorganizar a administração. Não foi difícil para Ghosn se sentir atraído pelo fabricante de automóveis ao receber proposta de um caçador de talentos. O presidente da companhia, Louis Schweitzer, procurava alguém com potencial para sucedê-lo algum dia. Em maio próximo, Schweitzer passará o comando executivo a Ghosn, mas continuará como chairman do grupo. O percurso ao poder foi meteórico. Em Paris, Ghosn começou como chefe de pesquisa , manufatura e compras da Renault em 1996. Três anos depois foi promovido a COO (Chief Operation Officer). Na Renault, Ghosn ganhou apelido de "Le cost killer", depois de empreitadas como o corte anual de US$ 3,6 bilhões em despesas. A Renault parecia "francesa demais" e "pequena demais" aos olhos dos analistas econômicos para adquirir o controle acionário da japonesa Nissan. Havia outras candidatas mais fortes. Mas os franceses estavam decididos a ampliar o mercado no planeta e foram bem-recebidos pelos japoneses porque fizeram menos exigências que os demais. "Juntar as duas companhias foi difícil, mas mais difícil ainda foi fazer a coisa dar certo", lembra Patrick Faure. A Nissan amargava dívidas de US$ 20 bilhões e vinha perdendo participação no mercado japonês havia 27 anos. Suas fábricas operavam com metade da capacidade. Escalado para o comando da companhia, Ghosn chegou em Tóquio, em 1999 e, na véspera do salão do automóvel, anunciou o plano que o levou a se tornar o executivo mais odiado no Japão. Fechou três fábricas de veículos e duas de motores, eliminou 21 mil dos 140 mil empregos e cortou o número de fornecedores à metade. O que mais irritava os antigos funcionários era ver que o homem que ousou fazer isso tudo não era nem japonês e nem francês. O brasileiro rompeu mitos e atacou o sistema econômico de regalias aos mais velhos, implantado no Japão no pós-guerra. O homem que passou a circular no Japão com guarda-costas fez uma promessa: Ele e toda a equipe abdicariam dos cargos se as metas não fossem alcançadas. Os objetivos eram reduzir a dívida à metade e alcançar margem operacional de 4,5%. "Carlos Ghosn é um homem que diz o que faz e faz o que diz", resume a diretora de assuntos corporativos da Nissan no Brasil, Kátia Costa, braço-direito de Ghosn no Brasil desde os tempos em que ele trabalhou na Michelin. Ele conseguiu afastar a Nissan da falência e recuperar o resultado financeiro e volume de vendas. O enxugamento e a renovação na linha de modelos fizeram com que a dívida fosse reduzida a zero antes do prazo e a Nissan se transformou numa máquina de lucros, ostentando hoje a maior margem operacional da indústria automobilística no mundo, com 11,1%. Em 2001, Ghosn foi promovido a CEO da Nissan. A parte mais agradável do processo veio na seqüência e inclui casos pitorescos. Adorado em todo o país, ele se tornou super herói de história em quadrinhos. Ficou, ainda, no quarto lugar na lista em que as mulheres apontavam os homens mais desejados para ser o pai de seus filhos. Entre destaques em pesquisas, o mais recente veio em dezembro passado, quando Ghosn foi o terceiro executivo mais admirado do mundo na pesquisa anual da PriceWaterhouse. Ele estava em 20º lugar em 2001. Mas em 2004, ficou atrás apenas de Bill Gates, da Microsoft, e Jack Welch, que comandou a General Electric . Por conta da América do Norte, o saldo da fusão acabou deixando a Nissan na frente da Renault em vendas, receita e lucros. Em 2003, a Nissan construiu fábricas nos EUA e fez uma joint venture na China. Em 2003, a Nissan teve receita de US$ 68 bilhões e lucro líquido de US$ 4,6 bilhões. No mesmo período, a Renault teve faturamento de US$ 46 bilhões e lucro de US$ 3,1 bilhões, com margem operacional de 3,3%. No final da primeiro parte do exercício fiscal de 2004, a empresa previu concluir o exercício, em março próximo, com receitas de US$ 72,8 bilhões, lucro operacional de US$ 7,83 bilhões e líquido de US$ 4,64 bilhões. Mas ainda falta uma parte do plano, que Ghosn promete cumprir. O chamado plano 180 - que prevê uma virada de 180 graus - fará com que as vendas anuais da Nissan aumentem em mais 1 milhões de veículos. Isso representará 38% a mais do que em 2000. A meta foi fixada para setembro. "Vamos conseguir", promete ele. MO