Título: A receita da Nestlé para compartilhar valor
Autor: Rosemblum, Célia
Fonte: Valor Econômico, 21/11/2006, Empresas, p. B2

A Nestlé, maior empresa do mundo na área de alimentos, resolveu introduzir ingredientes novos na receita adotada por grande parte das companhias que pretendem ser socialmente responsáveis. Com 2% das vendas do setor, num total de US$ 72,58 bilhões em 2005, a multinacional aposta em um modelo particular de longevidade das operações e das relações que estabelece com seus públicos interno e externo.

Longo prazo é uma palavra-chave. "Em curto prazo, a companhia poderia incrementar muito a rentabilidade de um ano, mas isso compromete o futuro", diz Paul Bulcke, vice-presidente da Nestlé para os Estados Unidos, Canadá, América Latina e Caribe. A multinacional, que contabiliza 140 anos de operação no mundo e 85 no Brasil, está empenhada em alinhar suas operações para "criar valor compartilhado", considerado como princípio fundamental da responsabilidade e da sustentabilidade empresarial. Pretende assegurar que o "share value" transforme-se em "shared value", algo como converter o valor da companhia em valor para todos os integrantes de sua cadeia de negócios.

No dia-a-dia das operações essa postura se traduz, por exemplo, no investimento em uma relação mais duradoura com fornecedores. Está fora de cogitação dispensar os produtores de leite que tradicionalmente abastecem a empresa para economizar dois centavos por litro de leite em uma eventual depreciação de preços no mercado. Poderia fazer sentido, já que apenas no Brasil a Nestlé computa anualmente a recepção de 1,5 bilhão de litros de leite. "Não atuamos assim", afirma Bulcke. "Amanhã esse fornecedor não estará mais com a gente e perdemos os outros que estão há vinte anos conosco."

"Quanto mais a empresa olha para o curto prazo, menos está ligada à sociedade", considera Bulcke. Quando decide atuar em determinado país, a Nestlé, conta o executivo, "entra para ficar". Instabilidades políticas e econômicas, uma constante na América Latina, ainda não resultaram em nenhum fechamento de fábrica na região.

Durante a tempestade e quando o ambiente se normaliza, o leite Ninho e as latas de leite Moça continuam nas listas de compras da população. "Só saímos de Cuba porque nos convidaram a nos retirar", ressalva Bulcke. "E hoje já temos duas ou três fábricas em operação lá."

A geração de valor ao longo da cadeia de negócios é uma questão prática, de negócios que pretendem continuar vivos e bem nutridos por muitos anos. A idéia é fazer com que benefícios sociais e ambientais sejam parte do processo de tornar a empresa mais competitiva no longo prazo, conforme explica um texto de Mark Kramer, da Escola de Administração Pública John F. Kennedy da Universidade de Harvard, que integra o balanço social da Nestlé.

A Foundation Strategy Group (FSG), uma organização sem fins lucrativos que oferece consultoria na área de progresso social, fundada por Kramer e Michael Porter, fez uma avaliação das práticas da Nestlé a pedido da empresa. Concluiu que a companhia "gerou um impacto profundo e positivo nas pessoas e no meio ambiente na América Latina".

O modelo utilizado pela organização é ilustrado por uma pirâmide. Na base está a responsabilidade - o cumprimento de leis, princípios empresariais, códigos de conduta. A camada intermediária é constituída pela sustentabilidade, pelo esforço para garantir o futuro. Na ponta do triângulo, figura a idéia de criar valor compartilhado: reduzir a pobreza, melhorar a saúde, capacitar as pessoas. "Não é possível haver uma atuação econômica sem responsabilidade social, mas é preciso uma hierarquia", explica Bulcke.

-------------------------------------------------------------------------------- No curto prazo, poderíamos incrementar muito a rentabilidade, mas isso compromete o futuro" --------------------------------------------------------------------------------

Sob essa perspectiva, há pouco espaço para idealismos e utopia na rotina de operações que envolve em todo o mundo cerca de 250 mil funcionários distribuídos por 487 fábricas. "Nossa atuação, dia a dia, está ligada ao longo prazo, mas também a fazer um bom trabalho nos negócios", afirma Bulcke. "Somos parte do mundo e é preciso equilibrar isso", justifica.

O mercado agradece. De janeiro de 2001 a 16 de novembro deste ano, as ações da Nestlé acumularam valorização de 51,9%. No mesmo período o Índice Dow Jones evoluiu 14,1% e o Índice de Sustentabilidade Dow Jones, que lista empresas socialmente responsáveis, subiu 18,7%.

E a sociedade também parece reconhecer os esforços da companhia. Uma pesquisa feita pela GlobeScan no ano passado, com 21 mil entrevistas em 21 países, mostra que a cada quatro pessoas que consideram a atuação da Nestlé excelente ou boa existe apenas uma que a avalia como regular ou não-satisfatória. Nos países em desenvolvimento, que concentram metade das vendas da indústria, a relação positiva é de oito para um.

A responsabilidade social da empresa também é bem-vista. Em 2005, a multinacional de alimentos obteve 31% de avaliações positivas nesse quesito. Outras companhias de atuação global que participaram da mesma pesquisa realizada pela GlobeScan ficaram com taxas em torno de 15% ou abaixo desse patamar.

Os índices não transformam a Nestlé em uma unanimidade. Mas a companhia tem conseguido vencer resistências que são verdadeiros pesadelos para algumas multinacionais. Embora continue como alvo principal das críticas e propostas de boicote da Baby Milk Action - uma organização não-governamental que pretende estimular o aleitamento materno e domina bem as técnicas para se fazer ouvir -, a empresa está em período de convivência harmônica com o combativo Greenpeace.

Os ambientalistas, em campanha acirrada para banir os transgênicos, chegaram a montar bloqueios e fizeram protestos contra a Nestlé em diferentes países, inclusive no Brasil. Mas esse período turbulento é história. Hoje, o site do Greenpeace exibe os produtos da companhia na lista verde de seu Guia do Consumidor, o que significa que ela, comprovadamente, não usa alimentos geneticamente modificados nas linhas de produção.

"As empresas não mudam sozinhas", diz Gabriela Volo, coordenadora da campanha de engenharia genética do Greenpeace Brasil. "Sem a pressão dos consumidores ou do Greenpeace nada acontece."

Bulcke tem uma visão diferente. Afirma que "sair bem na foto", embora às vezes seja necessário, não pode ser um fundamento de gestão. "É preciso ser honesto com as pessoas", diz. "A atividade prioritária de uma empresa é criar valor para o acionista. Podemos achar o que quisermos. Mas essa é a dinâmica."