Título: Renato de Albuquerque penhorou a vida para construir AlphaVille
Autor: Boechat, Yan
Fonte: Valor Econômico, 21/11/2006, Empresas, p. B9

O ano de 1974 mal havia começado e o Edifício Joelma ainda era apenas um símbolo da moderna arquitetura paulistana. Médici já limpava as gavetas para ceder sua sala no Palácio do Planalto a Ernesto Geisel, o Brasil se preparava para defender o título de campeão mundial na Alemanha e a crise do petróleo eclodida no ano anterior ainda fazia o mundo balançar. Foi com o Brasil assim, em um momento de incertezas e ainda uma boa dose de esperança de ser o país do futuro, que o arquiteto Renato de Albuquerque e o engenheiro Yoshiro Takaoka entregaram suas vidas como garantia para conseguir empréstimo de US$ 15 milhões com Aron Birmann, presidente e dono do falido Crefisul, em uma ampla sala de um dos andares do Joelma, na cidade de São Paulo.

Precisavam do dinheiro para iniciar um projeto visto com ceticismo pelo mercado e que ganhara o nome inspirado em um obscuro filme do cineasta francês Jean-Luc Godard: AlphaVille. Queriam construir na então distante cidade dormitório de Barueri um pólo empresarial para companhias não poluentes. Empresas leves, que teriam a certeza de não ter como vizinhos uma cimenteira ou uma cooperativa agrícola, algo comum naquela São Paulo ainda industrial dos anos 70.

A idéia parecia boa, mas faltava o capital. Chegaram ao Joelma dispostos a convencer Birmann a lhes emprestar o dinheiro. O banqueiro gostou da idéia, mas não das garantias oferecidas pelos dois sócios. E fez uma proposta inusitada. Emprestaria o dinheiro se Albuquerque e Takaoka aceitassem assinar uma apólice de seguro de vida no valor de US$ 7,5 milhões cada um. O beneficiário, é claro, seria Aron Birmann. "Ele nos pegou de surpresa, mas não havia mais de onde tirar o dinheiro", relembra Albuquerque. "Assinamos o seguro de nossas vidas em nome do Aron Birmann."

Assim, meio sem querer, repleto de riscos, nascia um dos empreendimentos imobiliários de maior sucesso da história recente do Brasil. Mirando no atacado, Albuquerque e Takaoka acertaram no varejo e transformaram AlphaVille em um negócio milionário, hoje espalhado por 16 estados e que se tornou referência na onda de loteamentos urbanos horizontais, com um jeitão dos "suburbs" americanos.

Cresceu tanto que acabou ficando grande demais para os empreendedores que apostaram, antes de todos, que as fronteiras urbanas da metrópole se expandiriam para além dos limites da cidade. Há cerca de um mês e meio a empresa AlphaVille Urbanismo (que substituiu a Albuquerque, Takaoka) foi vendida para a Gafisa, um dos maiores grupos imobiliários brasileiros por quase R$ 400 milhões.

De certa forma terminou ali, em uma asséptica sala no 20º andar de um moderno edifício da avenida Faria Lima, a história de um negócio que começara, na verdade, mais de meio século antes, quando Albuquerque e Takaoka se encontraram pela primeira vez. Mesmo tendo a certeza de que o negócio permanecerá com o mesmo nome, que seus executivos continuarão nos mesmos postos e que pouco deve mudar na concepção criada por ele, Renato de Albuquerque estava certo de que se fechava um ciclo, mesmo não admitindo isso. Para Takaoka o ciclo foi encerrado 12 anos antes, quando a diabetes o venceu.

Os dois se conheceram nos corredores da Escola Politécnica da USP, lá nos idos da segunda metade da década de 40. Mas a amizade se estreitou mesmo nos bares da região da avenida Ipiranga, ponto das picardias estudantis da época. Takaoka não bebia - os efeitos colaterais do álcool lhe davam dores de cabeça lascinantes - e era o responsável por acertar as contas dos amigos, que momentaneamente esqueciam como realizar as operações matemáticas básicas com precisão. E isso o aproximou de do futuro sócio Albuquerque.

Das rodas de chope, Albuquerque e Takaoka passaram a trabalhar juntos em serviços esporádicos de topografia. Quando se formaram montaram uma pequena empresa, que tinha como ativos um aparelho topográfico e um Ford Baratinha 38 que o pai de Takaoka havia doado à nova companhia. Dali passaram a construir pequenas casas populares, depois pontes, obras públicas de toda sorte e no final da década de 60 enveredaram no mercado imobiliário residencial.

Foi ai que a já estabelecida construtora Albuquerque, Takaoka deu um salto. Começaram a planejar edifícios para classe média nos bairros nobres da cidade com um grande diferencial: amplas áreas de lazer. "Naquela época só os edifícios de luxo tinham piscina ou quadras", lembra Albuquerque. "Nós decidimos fazer os apartamentos menores, mas oferecer muito mais espaço comum. Foi um sucesso."

Nessa época, quando as coisas iam bem para a dupla, representantes dos herdeiros do conde Armando Álvares Penteado procuraram os dois oferecendo 500 hectares do que fora a Fazenda Tamboré. Renato e Takaoka não sabiam ao certo o que fazer com tanta terra lá em Barueri, mas compraram pelo bom preço.

Ninguém no mercado imaginava que haveria paulistanos interessados em ir morar em Barueri, a 26 quilômetros de São Paulo. Daí a idéia de criar um pólo empresarial no terreno de 5 milhões de metros quadrados que haviam adquirido. Com o dinheiro emprestado por Birmann deram início ao projeto e conseguiram atrair algumas empresas, como HP, Cofap e Sadia. Mas em 1976 um executivo da HP, que cuidava da área imobiliária da empresa nos Estados Unidos, sugeriu que ali era um espaço perfeito para um condomínio residencial.

Albuquerque e Takaoka, como todos, ficaram céticos. Mas após algumas visitas a projetos da HP perto de São Francisco, decidiram apostar na idéia. Fizeram um projeto piloto, com 1,2 mil lotes de 500 metros quadrados, o AlphaVille I. "Vendemos tudo em três meses", diz Albuquerque. "Tomamos um susto danado com aquilo". O sucesso do empreendimento imobiliário fez com que os dois mudassem a estratégia por completo. O foco para o investimento era, na verdade, as casas, e não apenas as empresas não poluentes.

O sucesso inicial das vendas se mostrou um fracasso de ocupação. A maior parte dos compradores havia adquirido os terrenos para investimento, apenas. E sem gente morando no local, os ativos começariam a perder liquidez. Para convencer as pessoas a se mudar para AlphaVille, eles construíram 30 casas no loteamento. A estratégia tinha dois objetivos. O primeiro era mostrar que a coisa estava andando. O segundo, emprestar as casas aos futuros moradores enquanto as suas próprias não ficassem prontas.

Deu certo, em parte. Aos poucos começaram a surgir os primeiros moradores de AlphaVille. Mas a falta de infra-estrutura do local ainda era um empecilho para o desenvolvimento urbano. "Passamos a subsidiar farmácias, posto de gasolina, padeiro, ônibus, jornaleiros, enfim, gastamos um dinheirão para deixar AlphaVille com uma verdadeira cara de bairro", diz Renato.

Demorou, mas a estratégia deu certo. Três anos depois já existiam dois outros loteamentos no local. Albuquerque e Takaoka abandonaram todos os outros negócios e se concentraram em AlphaVille. Nos anos 80 a coisa explodiu, e novos condomínios foram surgindo onde fora a Fazenda Tamboré. No início da década de 90, vinte anos após o encontro de Albuquerque, Takaoka e Birmann, já existiam 15 condomínios na área, com quase 10 milhões de metros quadrados urbanizados.

E o resto é história. O modelo de AlphaVille ganhou as graças de uma parcela rica da população que se viu acuada pela violência crescente, pelo caos urbano que tomou conta da cidade e, também, pela sensação de morar em um bairro que, de certa forma, representa a idealização do sucesso. Virou status viver em AlphaVille ao lado de astros da música, da televisão, dos políticos e empresários, enfim, de gente que têm poder.

Albuquerque também mora em AlphaVille, assim como seu casal de filhos, um ecologista e uma artista plástica, que decidiram não seguir os passos do pai. Vive numa casa ampla, bem arborizada, onde guarda sua grande paixão: raras porcelanas chinesas. Em um "bunker" construído no quintal, mantém mais de 1,5 mil peças, algumas com impressionantes 3,6 mil anos.

Agora, que se desfez, do negócio, é em torno delas que ele passa a maior parte do tempo. Exatamente um mês após ter assinado a venda de sua empresa, estava encasquetado com um jarro que viu em um catálogo de leilões. Tem um quase igual, mas com uma mínima diferença na pintura. "Estou há dois dias estudando essa peça com uma lupa para entender onde e porque há essa diferença", conta, com um olho no interlocutor e outro no vaso branco pintado em azul . "Quando cismo com uma coisa vou até o fim", diz ele, com a tranqüilidade de quem quitou todas as dívidas.