Título: A plebéia formosa, a princesa arrogante e outras histórias
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 21/11/2006, EU & Investimentos, p. D6

Em 1979, a revista francesa GaultMillau, promoveu, como fazia anualmente - com sucesso na época -, uma degustação em torno de um determinado tema, abrangendo bons vinhos de qualquer região vinícola do planeta. Apenas os 40 melhores, selecionados em provas classificatórias, sempre às cegas, iam para uma final, onde um grupo de degustadores experimentados elegia os melhores. Naquele ano, focando tintos a base de Cabernet Sauvignon, um vinho espanhol, o Gran Coronas Reserva Etiqueta Negra 1970 foi o primeiro colocado deixando para trás rótulos de prestígio, como o Château Latour 1970.

Indignado, o responsável pelo celebrado Bordeaux mandou uma carta para a Decanter, a desde sempre influente publicação mensal inglesa, em que questionava os critérios da congênere francesa, argumentando que " não se podia comparar uma princesa, como o Latour, a uma plebéia " . Miguel A. Torres, filho do então presidente da Bodegas Miguel Torres, produtora do vinho vencedor, retrucou dizendo: " provavelmente ele sabe mais de princesas do que eu, mas não se pode duvidar de que existem plebéias muito formosas " .

É bem possível que tal provocação não tivesse espaço hoje, sobretudo porque a casa Torres é atualmente muito mais respeitada do que era naquele tempo. Ela cresceu em dimensão e ganhou inquestionável importância no cenário internacional, exportando para mais de 120 países. Embora já tivesse nome e história, foi fundada em 1870 e permanece nas mãos da mesma família.

O grande responsável por esse salto foi o autor daquela resposta impetuosa, Miguel A. Torres, agora com 65 anos, que assumiu formalmente o posto mais alto da companhia em 1991. Ele, que já havia empreendido um trabalho de renovação no estilo dos vinhos da casa - serviu de caminho para muitos produtores espanhóis abandonarem o padrão arcaico e ultrapassado vigente no país -, conseguiu expandir a empresa, mantendo-a familiar, e fortalecer a marca Torres mundo afora.

Esse trabalho é reconhecido. Entre outros galardões, Miguel Torres foi eleito Decanter Man of the Year 2002, prêmio que a revista inglesa concede todos os anos a um personagem de destaque no setor, e é geralmente citado nas listas de pessoas mais influentes do mercado de vinhos da atualidade. Ele concedeu esta entrevista exclusiva ao Valor ao passar rapidamente por São Paulo para apoiar seu distribuidor e parceiro, a Reloco , a caminho do Chile, onde implantou uma bodega em 1979 - foi praticamente o primeiro investimento vitivinícola estrangeiro no país andino.

Valor: Quando o sr. começou na Casa Torres e como ela atuava?

Miguel A. Torres: Meu pai, Miguel Torres Carbó, teve grande atuação na empresa. Não era enólogo, mesmo porque isso não existia na época, mas sabia degustar muito bem. Depois da Guerra Civil espanhola e de reconstruir a bodega, bombardeada em janeiro 1939, ele começou a viajar pelo mundo para vender nossos vinhos. Isso foi muito bem aceito, em especial no Canadá e nos Estados Unidos, e pouco a pouco, nos anos 50, estava comercializando em toda a Europa. Entrei em 1961, depois de estudar enologia em Dijon, na Borgonha, e me encarregava da produção enquanto meu pai se ocupava na parte comercial.

Valor: O mundo do vinho mudou muito ao longo desse tempo. Como foi a transição?

Torres: No começo correu tudo bem porque eram áreas separadas. Os problemas começaram mais tarde, nos anos 70, por diferenças de critério que foram se acentuando até que em 1981 resolvi pegar um ano sabático para evitar uma ruptura com meu pai e um problema dentro da empresa. Fui estudar viticultura em Montepellier (a melhor escola nessa área) e isso me serviu também para pensar e entender que era preciso esperar.

Valor: Essas discussões tinham a ver com a introdução de castas estrangeiras, como a Cabernet Sauvignon, que vocês foram um dos primeiros a implantar na Espanha?

Torres: Não, não era tanto em torno da produção. Sempre que eu tinha uma idéia nova, um vinho novo ele estava aberto e aceitava. Eram questões que envolviam mais marketing, investimentos e coisas pessoais.

Valor: Quais foram as mudanças o sr. fez primeiro quando assumiu?

Torres: Meu pai seguiu firme até seis meses antes de morrer em 1991, aos 82 anos. Uma das primeiras medidas que fizemos foi um protocolo familiar no qual o presidente teria que se retirar aos 70 anos.

Valor: Isso quer dizer que ainda faltam cinco anos. O sr. tem dois filhos que trabalham na casa. Quem vai lhe substituir?

Torres: Isso lhe direi daqui a cinco anos. Depois passo para o conselho de administração, acompanho mas não estarei no dia-a-dia da empresa. No momento estou muito contente com a quinta geração - minha filha Mireya é gerente técnica e meu filho Miguel de marketing. No mesmo nível do organograma há mais 8 e em um degrau acima há 3 diretores, um de produção, um comercial e o terceiro é de finanças e sistemas.

Valor: Então pode ser que o novo presidente não seja um Torres?

Torres: Não, sempre será um Torres. Estamos em conversações. Meus filhos de qualquer forma serão os proprietários, terão a maioria das ações. Eles é que vão ter de decidir, cada um dentro das suas funções, que atividade querem e o que é melhor para a casa. Quem vai dirigir, com mais ou menos colaboração. Em todo caso temos uma equipe muito boa trabalhando, muito coerente. Existem todas as possibilidades.

Valor: A Miguel Torres tem uma dimensão bastante grande. Onde vocês estão presentes?

Torres: Nós produzimos vinhos no Chile desde 1979, na Califórnia, onde minha irmã tem maioria e dirige, e em várias regiões da Espanha. Começamos em Penedés, mas hoje já produzimos em Ribera del Duero, com bodega própria; no Priorato temos um vinho a partir de vinhas nossas ainda não lançado e estamos construindo a parte de vinificação; em Jumilla compramos uma área de 140 hectares com 35 hectares plantados; e na melhor zona de Toro, em San Román, só temos a terra por enquanto.

Valor: Fora estas há a Jean Leon em Penedés. É uma estrutura autônoma?

Torres: Sim, tem seu próprio diretor e enólogo. Meu filho Miguel também é diretor. Compramos a vinícola do fundador, Jean Leon, de quem éramos muito amigos. Ele estava doente e nos procurou. A história dele é fantástica, há até um filme que vai ser lançado na Espanha sobre sua vida. Ele começou como taxista em Hollywood, ficou amigo e depois sócio de artista famosos e enriqueceu. Foi quem começou com castas estrangeiras na Espanha. É uma marca de prestígio e produz apenas cerca de 300 mil garrafas por ano.

Valor: Qual a produção total da Torres?

Torres: Na Espanha beira os 45 milhões de garrafas e no Chile umas 3,5 milhôes. Na Califórnia é muito pequena, não chega a 15 mil caixas.

Valor: Quanto vêm de uvas próprias e quanto é exportado?

Torres: Compramos 75% das uvas junto a produtores que acompanhamos e damos assistência técnica. Na Espanha, exportamos 60% da produção e no Chile 75%.

Valor: Quais são os principais mercados?

Torres: Nossos clientes de vinho (em Brandy, onde são muito fortes o México é o principal) mais importantes são Inglaterra, Dinamarca, Alemanha e Estados Unidos, mas o Japão é um mercado maduro e temos boa presença lá. Tem a Rússia que está crescendo rápido e vejo um bom futuro na China, na Índia e no Brasil. Acredito no mercado brasileiro e acho que passará na frente da China e da Índia.

Valor: Como vocês fazem a distribuição?

Torres: Em alguns países, como China e Suécia, abrimos nós mesmo uma importadora. Há outros onde temos importadores fortes como Suntory, no Japão, e Baccardi, na Dinamarca. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente com os Symington, de Portugal, e Drouhin, da Borgonha, temos uma participação pequena na distribuidora. O mesmo fizemos no México e em outros países (entre eles no Brasil). Essa fórmula não é para intervir na gestão, mas funcionar como verdadeiros parceiros. Com isso é preciso sempre discutir e chegar a um acordo. Nossa gente sabe que não existe a possibilidade de mudar de importador. Para eles é uma garantia de que têm a marca e para nós a certeza de é esses parceiros vão se esforçar e ficar atentos porque sabem a Torres está por trás.

Valor: A propósito, Drouhin e Simington compõem com vocês a Primum Familiae Vini.

Torres: Sim, é um grupo criado na década de 90 que reúne 12 grupos vinícolas de estrutura familiar, entre eles Champagne Pol Roger, Mouton Rothschild, Antinori, Perrin e Vega Sicília. Além de ter mais impacto junto à mídia e ao público, e ajudar a difundir a cultura do vinho, é importante para trocar idéias dentro de empresas familiares. Cada ano se visita uma vinícola, com todas as mulheres e filhos. É importante para transmitir às gerações seguintes o amor pelo vinho e fazer com que eles se conheçam melhor entre si. Eles entendem que há sinergia entre nós.

Valor: Como fazer na Torres, que tem uma estrutura muito grande, para administrar tudo, mantendo uma estrutura familiar?

Torres: A resposta é simples: os valores da empresa. Há uns 15 anos reunimos 40 trabalhadores nossos de todos os níveis e durante alguns dias eles tinham que determinar que valores existiam na Torres. Eles especificaram 10, que são valores inerentes à empresa, não o que almejamos, mas o que temos por tradição - honestidade, rentabilidade, paixão por qualidade, inovação, participação, aproximação com o cliente, humildade, respeito ao meio ambiente e confiança e lealdade. A esses acrescentamos agilidade. Esses valores é o que mantemos hoje em dia. Quando contratamos alguém, na entrevista observamos como ela se comporta diante desses valores. Ela vai trabalhar numa equipe e é preciso que não haja desvios, ou seja, a estrutura cresce e nos asseguramos que cresce com gente que segue esses valores. Qualquer problema que temos na empresa sempre aplicamos esses valores. Temos um horizonte ao qual nos dirigimos que é uma missão. Aonde queremos chegar? Essa missão não é um plano estratégico como se fazia antigamente. Um plano de cinco anos, e cada ano vamos vender aqui e outro acolá. Temos uma missão a longo prazo que é estar entre as 10 maiores empresas vinícolas do mundo. Em qualidade e dimensão. E queremos demonstrar que uma empresa da Espanha, da Europa, pode competir com os grandes da Austrália, da Califórnia.

Valor: É possível alcançar essa meta sem perder as raízes?

Torres: Pensamos que sim. Nos reunimos a cada 2 ou 3 semanas com um grupo de 10 trabalhadores. Comemos juntos e conversamos sobre esses assuntos. É muito importante que a gente tenha esses valores como seus e que entendam o que queremos. Que sintam a empresa como própria. Essa é uma grande vantagem que temos em relação a outras grandes companhias do setor. A grande maioria está em bolsa. Têm muito capital, porém uma meta de curto prazo que é dar dividendos. Nós podemos fazer previsões para 10 anos. Veja, por exemplo, nosso investimento no Priorato. Esse projeto tem 25 anos, 25 anos. Estamos loucos? Qualquer financeiro diria isso. Fazemos porque essa é a nossa filosofia, nossa constituição. Na China estivemos por 5 ou 6 anos, perdendo dinheiro porque acreditávamos que era viável produzir. Perdemos US$ 1 milhão, desistimos e hoje recomeçamos do zero só com distribuição de nossos vinhos espanhóis e chilenos. Se estivéssemos em bolsa não poderíamos faze-lo. Isso é o que dizemos a nossa gente. Estando conosco eles têm garantia de confiança e de continuidade. Numa multinacional há um contratempo, e no dia seguinte 20% perdem o emprego.

Valor: Há outras regiões em vista, fora Chile, Estados Unidos e Espanha?

Torres: Honestamente não. Visitamos e estudamos Austrália, África do Sul e outras zonas vinícolas, mas achamos que a nossa missão nos diz que não devemos produzir vinho em 20 países. Temos que ter uma dimensão, como empresa familiar, onde as pessoas ainda possam ter controle. Tenho todos os vinhos que produzimos na cabeça, como estão como evoluíram.

Valor: Como o sr. vê a questão do aquecimento global?

Torres: Vou estar em Nova York dentro de poucos dias e eles me pediram para falar sobre isso. É realmente um tema complexo. Além de particularmente estarmos buscando ares mais ao norte da Espanha, perto dos Pirineus, estamos estudando mudanças na viticultura. A Viticultura mediterrânea sempre discutiu como adiantar a maturação para fugir das chuvas de outono que traziam podridão. No futuro vamos, ao contrário, tentar atrasar a maturação. Antes plantávamos as vinhas mais próximas. Quanto mais juntas menos vigor e com isso as uvas amadureciam mais cedo. Agora plantamos mais espaçado. Outro procedimento é buscar porta-enxertos que atrasam a maturação.

Valor: Existe uma política dentro da Torres para acompanhar a evolução da vitivinicultura?

Torres: Investimos a cada ano 2 ou ? 3 milhôes em investigação e pesquisa. Temos um sistema de mapeamento via satélite para saber com mais precisão como os vinhedos se comportam. Estamos também fazendo estudos com velhas castas catalãs. Hoje são cerca de 30, onde algumas nem sabemos o nome, mas vamos seguir no seu estudo. Utilizamos infravermelho, ultra som, para decifrara o DNA da casta. Também utilizamos formas de analisar os polifenóis das uvas. Antes de colher as nossas ou de comprar de terceiros temos condições de analisar estes componentes. Nas barricas desenvolvemos um sistema com gráficos que dão as características de cada zona, que nos permite conhecer a origem da madeira. Com isso se consegue melhor qualidade nos barris.

Valor: Sua filha é quem conduz?

Torres: Sim. Ficou 3 anos em centros na França e Estados Unidos sempre se atualizando.

Valor: E sobre as rolhas?

Torres: Temos controles muito rígidos e o fabricante sabe que estamos investigando. Antes de cada entrega, antes de imprimir a marca Torres, uma pessoa nossa vai e recolhe amostras para analisarmos. Se passar seguimos.

Valor: Vocês utilizam tampas de rosca?

Torres: Utilizamos para mercados específicos como Inglaterra e Estados Unidos, basicamente para brancos e rosados. Recentemente começamos com um tinto, nosso Sangre de Toro e o resultado é ótimo. Tenho em casa é bastante prático.

Valor: Os espanhóis aceitam?

Torres: Não. Para a Espanha só utilizamos rolhas de cortiça.

Valor: O futuro aponta para tampas de rosca?

Torres: Não para todos os vinhos. Haverá, acredito, as tampas metálicas, as rolhas de cortiça e de vidro. Não descarto alternativas. Os corticeiros, por outro lado sabem disso e estão tentando melhorar a qualidade, inclusive comprando bosques de sobreiros, onde, com mais cuidado na extração da matéria prima, eles conseguem seguir o processo desde o princípio. Nada como a concorrência para fazer as pessoas se mexerem.

Reloco: (21) 2580 0350, www.reloco.com.b r