Título: Entre altos e baixos, energia limpa vira febre de investidores
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Fonte: Valor Econômico, 20/11/2006, Especial, p. A10

O setor empresarial dedicado à produção de energia limpa está se transformando no cenário do próximo grande boom de investimentos, onde os riscos estão sendo levianamente ignorados

Até recentemente, recorda Charlie Gay, um veterano com 30 anos no setor de energia solar, os capitalistas de risco estavam ocupados demais dando atenção aos capitães do setor de tecnologia da informação (TI) para perder tempo com "hippies amantes da natureza", como o próprio Charlie. Mas agora os "abraçadores de árvores" estão em alta e os barões do setor de TI estão investindo em tecnologias para energia limpa.

Entre eles está Vinod Khosla, um celebrado financista do vale do Silício. Khosla diz que o etanol será o próximo grande estouro. A empresa Applied Materials, onde Charlie trabalha, começou produzindo telas planas e chips para computadores, e hoje fabrica células solares. A Sun Power, subsidiária da Cypress Semiconductor no setor de energia solar, vale atualmente quase tanto quanto sua empresa controladora fabricante de chips.

Os investidores estão disputando oportunidades para financiar jovens empresas no setor de tecnologia limpa, especialmente envolvendo geração de energia. A Venture Business Research avalia que os investimentos nessa área feitos por capitalistas de risco e fundos de investimento em participações quadruplicou nos últimos dois anos, indo de cerca de US$ 500 milhões em 2004 para quase US$ 2 bilhões neste ano. A participação do capital de risco injetado em energia limpa está crescendo rapidamente (ver gráfico). A New Energy Finance, outra empresa de pesquisas, estima que investimentos de todo tipo no setor chegarão a US$ 63 bilhões neste ano, em comparação com apenas US$ 30 bilhões em 2004. A sedução de grandes lucros potenciais leva os bancos de investimentos a focar suas análises cada vez mais sobre o setor.

A febre da energia limpa está sendo alimentada por três fatores: petróleo caro, temores em relação à segurança energética e crescente preocupação com o aquecimento global. O suprimento de energia, dizem os entusiastas do setor, vai se alterar radicalmente ao longo das próximas décadas. Usinas de eletricidade poluidoras alimentadas a carvão e gás darão lugar a alternativas mais limpas, como as energias de origem solar e eólica; combustíveis obtidos de plantas e rejeitos substituirão a gasolina e o diesel; e modalidades pequenas e locais de geração de eletricidade substituirão usinas de eletricidade gigantescas que alimentam redes de distribuição distantes. Com o tempo, células de combustível alimentadas a hidrogênio tomarão o lugar dos onipresentes motores de combustão interna.

É uma visão ousada, mas, mesmo que ela ocorra muito lentamente ou apenas em amplitude limitada, os otimistas afirmam que mesmo assim a revolução desencadeará um crescimento espetacular para as empresas envolvidas.

Os analistas prevêem confiantemente que os negócios com energia limpa crescerão entre 20% e 30% ao ano durante uma década. O Jefferies, um banco de investimentos que organizou em Londres um recente seminário sobre o setor, indagou aos participantes dentro de quanto tempo, acreditavam eles, a energia solar deverá tornar-se competitiva com as tecnologias clássicas de geração: em 2010, 2015 ou 2020? Datas mais distantes - que dirá nunca - sequer foram discutidas. Cerca de três quartos dos presentes, comentou satisfeito um participante, eram investidores. Essa "megatendência", pronunciou o palestrante principal, "poderá ser a maior oportunidade para criação de emprego e riqueza no Século XXI".

Por ocasião de um evento similar dedicado à energia solar em San José, no coração do vale do Silício, o número de participantes quase quintuplicou, neste ano, para mais de 6,5 mil presentes. Arnold Schwarzenegger, o "governador verde" da Califórnia, deu o ar da graça em meio à sua campanha de reeleição. "Posso sentir a energia", disse a uma audiência eletrizada. "Energia limpa é o futuro."

Tais hipérboles podem parecer lembrar a bolha de investimentos no setor de internet. Mas os defensores de energia limpa insistem em que o crescimento é sustentável devido a gente como Schwarzenegger. O governador é um herói, em círculos ecológicos, devido a seu entusiasmo por regulamentação ambiental. Ele foi facilmente reeleito, em parte, porque abraçou a luta contra o aquecimento global e sancionou a lei regulamentando a primeira iniciativa abrangente americana para limitar emissões de gases estufa.

É também da Califórnia a mais ambiciosa iniciativa americana de fomento ao uso de energia solar, denominada "Um Milhão de Tetos com Painéis Solares". O Estado pagará US$ 2,9 bilhões em restituições no curso de dez anos para famílias e empresas que instalem painéis solares. O governo federal também está contribuindo com um crédito tributário de 30% do custo de instalação. Todos os tipos de empresas no Estado, da FedEx às vinícolas no vale do Napa, estão correndo para instalar painéis solares subsidiados.

Em 2010, a Califórnia pretende gerar 20% de sua eletricidade usando fontes renováveis. Nada menos do que 21 dos 50 Estados americanos têm em vigor esse tipo de "padrão de programa renovável", que as companhias de eletricidade locais são obrigadas a cumprir em um prazo pré-estabelecido. Os eleitores em Washington aprovaram um desses padrões em recentes eleições. O Maine tem a meta mais exigente, de 30%, embora suas companhias de eletricidade já estejam adequadas à exigência, graças às barragens hidrelétricas no Estado. Entre os mais ambiciosos está Nova Jersey, cuja exigência será de que 22,5% da energia venha de fontes renováveis em 2021. O Estado já é o segundo maior mercado de tecnologia solar no país, atrás da Califórnia.

Outras políticas governamentais asseguram que a produção de etanol do milho seja uma atividade comercial lucrativa, apesar das persistentes preocupações com que o processo produtivo consuma quase tanta energia quanto a disponibilizada pelo combustível resultante, de modo que o esforço não beneficia o meio ambiente nem proporciona independência energética. Subsídios são concedidos aos agricultores para que cultivem milho, às refinarias para que misturem o etanol a seus combustíveis, aos postos de abastecimento para que instalem bombas para vender o produto e aos consumidores para que o comprem. Além disso, diversos Estados têm leis exigindo que uma determinada quantidade de etanol seja misturada à gasolina, o que ajuda a ampliar a demanda. Um estudo do grupo lobista Global Subsidies Initiative estimou que tudo isso custará aos contribuintes americanos US$ 5 bilhões neste ano.

Nos EUA, porém, as motivações econômicas para o uso de energia limpa são relativamente pequenas, em comparação com a Europa. A União Européia (UE), por exemplo, deseja que 5,75% de todo o combustível para os transportes venham de fontes não fósseis até 2010. As grandes refinarias dizem que os incentivos lhes asseguram um mercado para tanto biodiesel quanto produzirem.

Para 2010, a União Européia (UE) tem uma meta de 18% para o uso de eletricidade obtido de fontes renováveis. Analistas do banco de investimentos Goldman Sachs estimam que a produção de energia solar teria de crescer mais de 30% ao ano para atingir a meta da UE. Segundo o Goldman, em 49 países há políticas para energia renovável que estimularão um crescimento rápido de companhias geradoras de energia limpa, inclusive em grandes mercados emergentes, como o Brasil, a China e a Índia.

A Alemanha é talvez o país mais generoso. Os alemães fixaram o preço da energia renovável para os próximos 20 anos segundo uma escala móvel que diminuirá ao longo tempo. Certos projetos de energia solar receberão até 0,57 euros (US$ 0,73) para cada kilowatt-hora gerado de eletricidade, em comparação com a atual taxa em torno de 0,05 euros para energias mais sujas. Em circunstâncias normais, a Alemanha seria um lugar péssimo para instalar painéis solares: não é um país muito ensolarado e tem uma boa rede distribuição, que não é necessária para a opção solar. Mas, graças a seu esquema tarifário, os alemães criaram o maior mercado do mundo para aproveitamento da energia solar.

Em todo o mundo, governos como o da Alemanha têm comprometido bilhões ou, em alguns casos, verbas ilimitadas para desfraldar a bandeira da energia limpa. Nesse processo, afirmam os entusiastas, esses países "asseguraram preventivamente" o crescimento de tecnologias limpas. Os defensores dessas iniciativas argumentam que os subsídios são razoáveis, pois incentivam uma causa meritória - o combate ao aquecimento global - que os mercados não parecem valorizar suficientemente.

E, além disso, os subsídios não são são permanentes. Gay, da Applied Materials salienta que o custo da geração de energia de fonte solar vem caindo continuamente ao longo tempo. As primeiras células, instaladas em satélites, custaram cerca de US$ 200 por watt gerado. No ano passado o preço tinha caído para cerca de US$ 2,70 por watt. Isso significa uma queda de aproximadamente 18% no preço a cada vez em que a produção duplica, estima ele. A queda dos preços acontece inexoravelmente com o aumento no volume gerado, afirma ele, de modo que os subsídios simplesmente ajudam a acelerar o processo estimulando mais vendas. Chegará o momento, sustentam os defensores de tecnologias limpas, em que energias renováveis passarão a ser competitivas com combustíveis fósseis, permitindo que os governos ponham fim aos subsídios. Gay acredita que dentro de uma década a energia solar será tão barata quanto a de grandes usinas a carvão. Algo desse tipo já aconteceu no Japão, onde no ano passado os subsídios à geração de fonte solar foram cancelados, após redução gradativa. Quando esses subsídios começaram a valer, em 1994, diz Chris O´Brien, da Sharp, maior fabricante de células solares do mundo, um sistema custava cerca de US$ 16 mil por kilowatt e o governo arcava com metade do custo.

Cerca de 500 sistemas foram instalados no primeiro ano. Uma década depois, o custo tinha caído para US$ 6 mil por kilowatt e 60 mil sistemas tinham sido adaptados. Atualmente, diz ele, o Japão é o mercado número um, "onde os consumidores continuaram a comprar sistemas solares sem subsídios".

Mas tudo isso é um pouco enganoso. Os preços da eletricidade no varejo, no Japão, estão entre os mais altos no mundo, tornando muito mais fácil a participação da energia solar. Na maioria dos países, admite Michael Liebreich, da New Energy Finance, energia e combustíveis renováveis serão mais caros do que os tipos mais sujos num "futuro previsível".

Isso deixa as atividades comerciais envolvendo energia limpa em larga medida na dependência de subsídios governamentais. As ações de empresas atuantes no setor subiram, depois do discurso de George Bush sobre o estado da União, em janeiro, quando ele prometeu eliminar a dependência americana do petróleo estrangeiro. As ações também subiram devido à expectativa de que o recém-eleito Congresso de maioria democrata injetará mais dinheiro em iniciativas verdes. Afinal de contas, diversos dos políticos eleitos tentaram melhorar suas credenciais ambientalistas exibindo enaltecedores comerciais de si mesmos percorrendo o interior do país em meio a grandes turbinas eólicas.

Mas a lei que um político pode criar, outros podem eliminar - e é aqui onde mora um dos maiores perigos para a energia limpa. De tempos em tempos, os políticos americanos têm se abstido de renovar a vigência de isenções tributárias beneficiando, por exemplo, a geração de energia eólica. Isso fez com que o setor perdesse pressão diversas vezes, antes que subsídios entrassem novamente em vigor (ver gráfico). O incentivo governamental deverá caducar novamente no ano que vem. Analogamente, as ações de companhias européias operadoras no setor de energia limpa caíram no início deste segundo semestre, acompanhadas pela queda dos preços, na UE, das autorizações para emissão de dióxido de carbono. O preço das licenças tinha caído porque os governos europeus as haviam distribuído em quantidade demasiada aos poluidores, inundando, dessa maneira, o mercado.

Também os eleitores por vezes perdem o entusiasmo. Em recentes eleições, os californianos, normalmente um pessoal firmemente ecológico, votou contra uma proposta de instituição de um imposto sobre a produção petrolífera para bancar pesquisas sobre fontes renováveis. Apesar disso, os investidores em energia limpa estão, fundamentalmente, apostando em que os governos e contribuintes que investem nessas tecnologias continuarão a jogar muito dinheiro no setor.

É praticamente certo que uma grande queda no preço do petróleo fará com que os governos fechem suas torneiras financeiras, pois nesse caso os subsídios tornam-se relativamente mais caros. O desenvolvimento de novas tecnologias não emissoras de dióxido de carbono parecerão menos urgentes, se houver bastante petróleo barato no mercado. Quando os preços do petróleo caíram nos anos 80, os governos, discretamente, abandonaram muitos dos planos grandiosos de independência energética elaborados durante os choques de petróleo dos anos 70.

Na visão de Liebreich, um petróleo abaixo de US$ 50 por barril comprometeria o ímpeto dos progressos em energia limpa. Khosla, o capitalista de risco, advertiu os presentes ao seminário em San José de que são necessárias tecnologias "incondicionalmente mais baratas" do que os combustíveis fósseis: "Se não for mais barato, não terá escala".

Por enquanto, porém, a preocupação maior é acompanhar o ritmo da demanda. A maioria dos fabricantes de turbinas eólicas têm pedidos que os manterão ocupados nos próximos anos. Executivos da Neste, uma grande refinaria finlandesa, duvidam que a produção européia de biocombustíveis possa crescer com suficiente rapidez para cumprir a meta da União Européia. A UE teve também de reduzir sua meta de energia renovável, porque o setor não conseguiu crescer suficientemente rápido para atingi-la.

O crescimento das empresas de energia solar ultrapassou a oferta de silício de alta qualidade necessário para produzir painéis. Os investidores estão se precipitando em financiar fábricas para produzir o silício necessário. O Goldman Sachs crê que a produção dobre até 2010 - aumentando o receio de um eventual colapso nos preços. Enquanto isso as empresas de energia solar em busca de financiamento tentam se destacar, seja com contratos que garantam seu suprimento futuro de silício ou por meio de tecnologias que diminuam seu consumo do insumo.

O potencial para crescimento, defende a maioria dos analistas, é evidente. Mas, gargalos e complicadores políticos, para não mencionar tropeços tecnológicos, produzirão solavancos no caminho. De fato, teme-se que a maioria dos investidores eufóricos tenha desprezado esses obstáculos, o que parece ter contribuído para uma substancial queda nos preços das ações de empresas no setor de energia limpa neste ano - embora elas tenham se recuperado. O nervosismo fez com que diversas empresas desenvolvendo energias não poluentes cancelassem lançamentos planejados de ações.

"Há uma discussão válida sobre alguns segmentos", diz Keith Raab, que comanda a Cleantech Venture Network. Em alguns casos, os preços das ações de empresas no vermelho - e a rarefeita chance de gerar lucros no curto prazo - lembram os excessos da bolha da internet. Nas palavras de Douglas Lloyd, da Venture Business Research, "há dinheiro demais correndo atrás de poucas oportunidades. Como é possível que tantas companhias de energia solar venham a ter êxito? Não é possível".

(Tradução de Sergio Blum)