Título: Morre Milton Friedman, o pai do monetarismo
Autor: Andrade, Cyro
Fonte: Valor Econômico, 17/11/2006, Especial, p. A14

O economista americano Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976 e um dos maiores defensores do livre mercado, morreu ontem aos 94 anos, vítima de um ataque cardíaco em San Francisco, EUA. Mas certamente se continuará a falar do economista, pela dimensão e sentido de permanência que ganhou seu pensamento, associado ao exercício de liberdades políticas e individuais.

Para aqueles que preferiram colar seu nome à visão de patrono de políticas econômicas inspiradas no privilégio e na exclusão, e de homem ligado à ditadura chilena, não será a morte que melhorará a imagem que dele guardaram. Nem que o ouvissem repetir cem vezes o que disse em palestra em 1991: "Não tenho nada de bom para dizer a respeito do regime político imposto por Pinochet". Talvez permaneça na perpetuidade a famigerada frase "não existe almoço grátis", que, segundo Friedman disse ao Valor, em entrevista publicada em junho do ano passado, era apenas "atribuída a mim, mas não criada por mim". Na verdade, a expressão foi difundida pelo escritor de ficção Robert A. Heinlein.

Mas Friedman pagou caro pelas relações com a ditadura latino-americana. Admitia que havia se encontrado com Augusto Pinochet e outras pessoas do governo quando esteve no Chile, a convite de uma instituição financeira. Não via nisso, porém, motivo para reprovação. Na entrevista concedida ao Valor, rememorou o episódio e se defendeu. "A situação no Chile era muito complicada porque [Salvador] Allende estava prestes a transformar o Chile em um Estado comunista. O pessoal de Pinochet impediu que ele o fizesse, eliminando Allende e instaurando um regime militar. Nós, de Chicago, não tivemos nada a ver com isso. Antes que isso acontecesse, fizemos um acordo com a Universidade Católica de lá. Formamos pessoas boas, tão boas quanto qualquer economista de Chicago. Após a queda de Allende, esses economistas eram as únicas pessoas no Chile sem envolvimento com Allende... Os 'Chicago Boys' criaram um programa de reconstrução e melhoria econômica."

Friedman considerava que havia aberto caminho para a liberdade política e individual que os chilenos reconquistariam anos depois. Mas a pecha de cúmplice dos generais golpistas lhe seria gritada por manifestantes durante o tempo em que esteve em Estocolmo, em 1976, para receber o Nobel - acompanhado da mulher, Rose, também sua companheira de atividade acadêmica. A distinção vinha em reconhecimento de seu trabalho de renovação analítica da história e da teoria monetária, remodelagem da teoria do consumo e demonstração da complexidade das políticas de estabilização.

Suas idéias, que definiram a corrente moderna do monetarismo, constituem a base da ortodoxia econômica de hoje:

A inflação é sempre um fenômeno monetário.

As autoridades monetárias devem observar regras, em vez de exercer poderes discricionários (políticas monetárias politizadas são fonte de instabilidade).

Taxas fixas de câmbio são fonte de instabilidade.

Percepções equivocadas sobre o nível de preços podem levar a deslocamentos indevidos de produção.

No longo prazo não há relação entre taxa de inflação e taxa de desemprego.

O desemprego volta à sua taxa normal, independentemente do que seja a taxa de inflação.

Economias centralmente planificadas não podem funcionar com eficiência.

O trabalho dos ortodoxos não escapava a suas críticas. Como lembra João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Friedman considerava excessivo o uso da matemática em textos acadêmicos produzidos por ortodoxos. "Sua mensagem era que técnicas matemáticas aplicadas à economia haviam se tornado mais importantes do que a discussão de conceitos e idéias econômicas."

A matemática foi seu primeiro interesse na Universidade de Rutgers, do Estado de Nova Jersey, onde se graduou em 1932. Chegou a passar por vários exames nessa área, mas também foi reprovado em outros. Logo iria voltar-se para a economia. Foi em 1932, também, que Friedman ligou seu destino à Universidade de Chicago, como estudante e depois como professor.

Chegou como bolsista, por recomendação de Homer Jones, que havia sido seu professor em Rutgers. Jones e Arthur Burns (presidente do Fed de 1970 a 1978 e conselheiro de Ronald Reagan) foram duas "fortes influências", disse Friedman em entrevista a Brian Doherty, da revista "Reasonline", em 1995. Friedman não saberia explicar, porém, para onde as influências de o haviam levado.

"Não posso dizer em que acreditava naquela época. Minhas idéias não estavam formadas. Eu era um jovem ingênuo e o que mais me impressionava era a Grande Depressão e a convicção de que deveria haver algum modo de evitar que uma coisa como aquela acontecesse", disse à "Reasonline".

O sonho americano tinha se transformado em pesadelo que ensombrecia ainda mais a vida já difícil do jovem nascido em Nova York, em 31 de julho de 1912, quarto e último filho de Sarah Ethel (Laudal) e Jeno Saul Friedman. Seus pais haviam nascido em Carpatho-Ruthenia, então uma província austro-húngara, que no entre-guerras se tornaria parte da ex-Tchecoslováquia e depois seria incorporada à ex-União Soviética. Sarah e Jeno emigraram para os EUA bastante jovens. Conheceram-se em Nova York. Milton tinha um ano quando os pais se mudaram para Rahway, Nova Jersey.

Lá, sua mãe instalou uma mercearia, enquanto seu pai se envolvia em negócios mal-sucedidos. Jeno morreu quando Milton ia completar o curso secundário. A partir daí, a mãe e as irmãs seriam responsáveis pelo sustento da família. Mas estava decidido que ele iria para a faculdade, embora devesse custeá-la, o que faria com pequenos empregos, negócios ocasionais e trabalhos de verão.

A impressão causada pelo dramático cenário de perdas econômicas e desorganização social causado pela Grande Depressão iria refletir-se nas motivações intelectuais de Friedman e na orientação de sua atividade profissional. Ele, que começara ensinando economia pelos padrões tradicionais, em cursos sobre ciclos econômicos, teoria dos preços, moeda e bancos, queria apurar a visão crítica, para enxergar além das salas de aula.

"Diferentemente de outros que ensinavam economia, Milton procurou uma arena maior, e lá ofereceu suas opiniões sobre a organização da sociedade, sem limitar-se aos temas dos cursos que ministrava", recorda Anna J. Schwartz, com quem compartilhou a autoria do clássico "A Monetary History of the United States, 1867-1960". A declaração de Schwartz consta de documento do Fed de Minneapolis.

Nos anos 1950, Friedman faria conferências sobre políticas públicas em várias universidades, produzindo textos que Rose reuniria em "Capitalism and Freedom". Como se lê no livro de memórias do casal, ele fez aquelas conferências "num clima intelectual hostil", porque "discordava da ortodoxia dominante a respeito de políticas públicas e teoria econômica" - ou seja, opunha-se às idéias sobre o Estado de bem-estar e aos princípios socialistas em políticas públicas e ao keynesianismo em teoria econômica. Aquele livro iria tornar-se o veículo de disseminação das idéias de Friedman.

Friedman discordava da linha de pensamento que desde os anos 30 havia se entranhado na sociedade americana de maneira ampla e que, lembra Anna J. Schwartz, dominava não apenas o discurso econômico e político, mas também a literatura, o teatro, as artes visuais e o cinema. O ex-presidente americano Franklin D. Roosevelt era visto como o governante providencial que, com o "New Deal", salvara o capitalismo dos capitalistas.

Era amplamente aceita a idéia de que a instabilidade caracterizava a situação normal da economia - que nos anos da Grande Depressão entrara em paralisia, de acordo com essa interpretação, por causa da ausência de intervenção governamental. E que voltaria a ganhar impulso nos anos 30, assim como depois da Segunda Guerra, graças às ações de governo.

Friedman confrontou esse modo de ver as coisas. E o fez, diz Schwartz, modificando radicalmente o entendimento que se tinha a respeito do que havia provocado a Grande Depressão. Friedman pôs em evidência a redução de um terço na oferta de moeda entre 1929 e 1933 como explicação para o desemprego sem precedentes, queda de preços e crescimento econômico negativo que caracterizaram aqueles anos.

O Fed havia produzido o colapso econômico, e não as supostas falhas de uma economia de mercado. O sistema econômico era inerentemente estável, mas políticas equivocadas aplicadas pelas autoridades monetárias e departamento do governo poderiam desestabilizá-lo, argumentava Friedman. "A defesa do capitalismo e da liberdade passou a ser identificada com o nome de Milton", diz Schwartz.

Ao descrever o funcionamento da economia de livre mercado, ele assinalou a importância da propriedade privada de recursos, em vez da coletiva. O sistema de preços fornecia informações ao indicar o que os proprietários de recursos poderiam produzir com lucro e, ao explicitar o que os indivíduos esperavam que fosse produzido, criava incentivos para que essas preferências fossem atendidas.

Friedman persistiu na defesa de soluções de mercado nos anos 1950 e 1960, apesar da falta de apoio, no governo e na academia. Como relata a economista, primeiro, Friedman dirigiu sua mensagem aos economistas, que não se deixaram convencer. Podiam ter admiração por ele, reconheciam suas qualificações para o debate, mas continuaram irredutíveis. "A mensagem nunca foi aceita pela geração que era dominante no pensamento econômico quando Milton começou a ensinar."

Ele foi bem-sucedido, interpreta Schwartz, por que apresentava seus argumentos na forma de hipóteses que deveriam ser testadas. Era um experimentalista. Certamente, essa flexibilidade intelectual não era traço que pudesse ser atribuído a um economista conservador, como Friedman era freqüentemente visto. Intransigente, sim, ele foi na defesa da inviolabilidade da liberdade individual, e de sua ampliação, como contraponto da limitação da ação governamental. E, naturalmente, não abria mão da liberdade de pensar e fazer. Por isso, nunca quis trabalhar em formulação de políticas. Prestou serviços ao governo nos anos 1930, durante o "New Deal", como Rose também faria, em ocasião diferente, mas ambos limitaram-se ao exercício profissional de estatísticos e economistas. Assuntos relacionados a política nunca foram os de sua atividade principal.

Friedman até poderia admitir, como disse na entrevista a "Reasonline", que as pessoas se envolvessem de alguma forma em questões de governo, se o desejassem, mas desde que essa não fosse sua atividade principal e que, portanto, tivessem um emprego como base segura de renda. "De outro modo", afirmou, "você será corrompido e destruído. Como vai conseguir apoio? Só terá apoio de pessoas ideologicamente comprometidas. E não vai ser tão livre como talvez pense que seja."

Friedman foi conselheiro econômico do senador Barry Goldwater, em 1964, em sua frustrada campanha para presidente. Em 1968, foi conselheiro econômico de Richard Nixon na campanha que o levaria à Casa Branca. Em 1966, passou a escrever uma coluna na revista "Newsweek". Todas essas atividades foram, no entanto, sempre "um passatempo menor" segundo ele. Pensar políticas econômicas, disso Friedman fez a razão de sua vida. Era quando entrava em cena o liberal extremado, mas aquele de roupagem clássica (o termo "liberal" é hoje "muito mal interpretado", disse a "Reasonline"). Ele gostaria, sim, de ser um libertário do tipo anarquista, partidário da ausência absoluta de governo. Mas não via na idéia a representação de um sistema social viável. Era afiliado ao Partido Republicano, mas não porque ali o impressionassem princípios, e sim porque desse modo podia ser "mais útil e ter mais influência".

Liberal, ele era interessado em discutir mudanças que, embora abaixo do nível idealmente imaginado, pudessem representar avanços na direção almejada. Friedman gostaria que o Fed fosse abolido, por exemplo, mas escreveu sobre como o banco central americano, existindo, poderia melhor conduzir-se. E melhor seria se o sistema educacional fosse todo privatizado, mas o caminho até lá também poderia ser pavimentado com vales que os pais receberiam do governo para pagar a escola que preferissem para seus filhos, idéia que Friedman acabou abraçando.

Um dos mais influentes economistas do século XX, Friedman alcançou respeitabilidade e projeção que a maioria dos economistas conhecidos como libertários não conheceu. E assim foi ainda antes que ganhasse o Nobel. Por que?

Na entrevista a "Reasonline" ele disse que o mais influente propagador dos ideais libertários foi Hayek, consagrado pelo impacto fundamental de "The Road To Serfdom". Admitiu que teve mais influência do que ideólogos como Ayn Rand ou Murray Rothbard, provavelmente porque eles foram "muito intolerantes". E completou: "Tenho raízes firmes em alguma coisa que não é ideologia. Tenho a base da disciplina científica. Não fui um pregador ou um ideólogo ou um filósofo desligado".