Título: Descendência da riqueza
Autor: Monteiro, Luciana
Fonte: Valor Econômico, 17/11/2006, EU & Investimentos, p. D1

Durante meio século, a família real britânica preparou o príncipe Charles para substituir a rainha Elizabeth II. Mas as chances de o ex-marido de Lady Di, aos 58 anos, assumir o trono britânico são menores a cada dia que passa e tudo indica que o novo rei será seu filho, Willian, de 24 anos. Uma situação que não se limita aos muros do Palácio de Buckingham. Os avanços da medicina e o aumento da longevidade vêm trazendo desafios sucessórios importantes para as famílias afortunadas em geral. O pai, normalmente mais conservador nos investimentos, via no filho, com um perfil um pouco mais moderado, seu sucessor. Já o neto, mais arrojado, não imaginava comandar o patrimônio familiar tão cedo, mas é justamente ele quem deverá assumir os negócios e a responsabilidade de perpetuar a fortuna deixada.

O patriarca de uma família com uma das maiores fortunas do Brasil passa por situação parecida. Aos 70 anos, e com uma saúde de ferro, ele não pensa tão cedo em se aposentar e seu filho, de 50 anos, não vislumbra assumir o patrimônio da família, que deverá ficar para o neto. Com pouco mais de 30 anos, ele é o provável futuro comandante dos negócios do avô.

Mas como fazer para que esse processo seja tranqüilo diante de gerações tão diferentes? É exatamente essa questão da transição de patrimônio um dos principais temas nos escritórios de family office atualmente. Responsáveis por administrar não só o patrimônio financeiro, esses escritórios cuidam de todas as necessidades da família, desde questões sucessórias até a decisão da compra de um iate, por exemplo.

A preocupação não está mais tão concentrada no treinamento do sucessor, mas em conciliar pontos de vistas tão diversos, diz René Werner, especialista em governança familiar e corporativa e em desenvolvimento societário. "O filho, antes herdeiro natural do patrimônio, não assume mais a figura do sucessor, mas de mediador nesse processo", diz. " E ele se depara com perfis completamente diferentes, não só em termos de investimentos, mas de experiências de vida mesmo."

Do ponto de vista legal, a herança é um direito, não exige preparo, competência ou qualquer conhecimento, lembra Renato Bernhoeft, especialista em consultoria societária. Mas, para a administração de bens e do legado que o acompanha, é preciso competência e capacidade, que devem ser desenvolvidas pelo próprio herdeiro. Essas habilidades não são genéticas e precisam ser aprendidas, argumenta o executivo. "O grande desafio não é gerir um patrimônio, mas perpetuá-lo."

Como resultado dessa mudança na forma de transição do patrimônio, cresce o número de empresas familiares com gestão profissionalizada, em que o principal executivo não faz parte da família, conta Ricardo Taboaço, do escritório Taboaço, Nieckele e Associados, um multifamily office carioca. "O que se vê é que muitos herdeiros não querem ser o presidente da companhia e sim fazer parte do conselho de administração, para poder cobrar as metas do presidente", afirma. "Um empresa que tenha o filho ou o neto como sucessor natural é hoje uma exceção."

Diante desse cenário, os family offices já começam também a trabalhar com portfólios de investimentos separados, de acordo com as gerações. Antes, o patrimônio da família era gerenciado como um bolo único, o que já não ocorre com a mesma freqüência, diz Werner. Em muitas famílias, não há mais espaço para a administração do patrimônio como um todo, reitera Taboaço. "Muitos têm optado por segregar o patrimônio e, assim, cada integrante da família cuida do que é seu", afirma. Ele conta que, há duas semanas, recebeu integrantes de uma tradicional família que resolveu desmontar o escritório próprio que mantinha e optar pela pulverização.

A administração de portfólios com gestores e estratégias diferentes, no entanto, também traz aos family offices alguns desafios. O primeiro está na capacidade de atender demandas tão diferentes de uma mesma família. Em segundo lugar, com carteiras de investimento distintas, é preciso saber lidar com a possibilidade de competição dentro da própria família. Outra questão é conseguir conciliar o bom gerenciamento dos bens (o que os gestores chamam de valores tangíveis) com a adoção de valores como sustentabilidade (intangíveis). "A primeira geração normalmente está mais preocupada em agregar valores tangíveis, enquanto os mais jovens têm uma visão de mais longo prazo e já sabem que a sobrevivência desses ativos tangíveis depende de ativos intangíveis", defende Werner.

Ganha corpo ainda a discussão de como tratar questões específicas de uma determinada família, como um dependente químico ou um homossexual. Em geral, tratam-se de famílias tradicionais e poucas lidam abertamente com isso, diz Werner. Novamente, a família real britânica, com sua elevada exposição, é o maior exemplo de como um escândalo pode incomodar os negócios. Werner cita o caso de um cliente, um casal homossexual, que acaba de adotar uma criança. Embora muito se tenha avançado em termos culturais, haverá um problema sucessório, já que o Brasil não reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. "O mundo está mudando rapidamente e os family offices terão de se preparar para prover soluções para diferentes casos", avalia.

A cada dia, os clientes demandam mais dos family offices, diz Taboaço. Questões pessoais, mais do que financeiras, ganham cada vez mais evidência, conta. "Em comum a família querer saber se o excesso de dinheiro contribuiu de maneira negativa para a formação do indivíduo, por exemplo", conta.