Título: Dólar barato reflete mudança estrutural
Autor: Lamucci, Sergio e Neumann, Denise
Fonte: Valor Econômico, 10/11/2006, Brasil, p. A3

O câmbio valorizado veio para ficar porque reflete mudanças estruturais na economia brasileira, e não o elevado diferencial de juros entre as taxas externas e internas, avaliam os economistas do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Nesse novo cenário, o Brasil tende a se especializar ainda mais na produção de commodities, ao passo que a indústria manufatureira vai sofrer com esse nível de câmbio. Estas e outras conclusões e avaliações estão na Carta de Conjuntura do Ibre do mês de novembro.

Para o presidente do Ibre, Luiz Guilherme Schymura, as alterações na economia brasileira refletem mudanças também estruturais na economia global, causadas pelo crescimento acelerado da China e de outros países asiáticos. Esse fenômeno empurrou para cima os preços das commodities exportadas pelo Brasil, garantindo um fluxo comercial elevado e regular para o país. O resultado desse processo é um dólar mais barato, que só não cai mais devido à "maciça atuação do Banco Central e do Ministério da Fazenda acumulando reservas e quitando antecipadamente a dívida externa".

Schymura diz que o comportamento dos juros brasileiros e americanos nos últimos meses deixa claro que não é o diferencial entre as taxas que explica a valorização do câmbio no país. Do quarto trimestre do ano passado para cá, houve um forte estreitamento dessa diferença, devido à queda da taxa Selic simultaneamente ao aumento dos juros básicos nos EUA, e o dólar só caiu. De setembro de 2005 para cá, a Selic caiu de 19,75% para 13,75% ao ano, enquanto a taxa americana subiu de 3,5% para 5,25%. Nesse período, o dólar caiu de R$ 2,36 para R$ 2,14.

A mudança de patamar do câmbio se deve a essa nova configuração da economia global, que, para o Ibre, veio para ficar. O economista Samuel Pessôa, da FGV, acredita que a China deve crescer com força ainda que haja uma desaceleração da economia americana, hoje a grande compradora dos produtos chineses. Com um nível de poupança muito alto, o país asiático pode reduzi-la um pouco caso haja um desaquecimento nos EUA, passando a sustentar o crescimento mais no consumo doméstico. "A China deverá continuar a crescer muito, a taxas de 10%, 8%, ou 7%", diz ele. Esse ritmo de expansão da economia manteria os preços das commodities em níveis elevados, ainda que talvez um pouco mais baixos que os atuais, o que seria suficiente para o Brasil gerar superávits comerciais expressivos e, com isso, um fluxo elevado de dólares. O saldo comercial deste ano deve ficar próximo de US$ 45 bilhões.

Para Pessôa, o país que surge desse novo arranjo deverá ser mais especializado em commodities. "Além disso, vai acabar sobrando para a indústria", avalia, dizendo que poderá haver problemas de emprego em setores localizados.

A Carta do Ibre nota que essa "situação provoca deslocamentos importantes na economia, que obviamente podem ter impactos socioeconômicos negativos em setores e áreas específicas". A combinação do câmbio valorizado e da competição chinesa já faz estragos em diversos segmentos empresariais, como o têxtil, o calçadista, o moveleiro e o de brinquedos, diz o Ibre. "Há um grande risco de que a indústria automobilística venha a ser seriamente afetada dentro de alguns anos pela mesma conjunção de fatores."

Enfrentar esse novo cenário é algo complexo, dizem Schymura e Pessôa. A melhor estratégia, para eles, é atacar os problemas estruturais da economia. Fazer a reforma trabalhista e promover um esforço para melhorar a qualidade da educação seriam fundamentais. Elas "reforçariam a eficiência do mercado de trabalho e a qualidade da mão-de-obra", o que "ajudaria as empresas a competir na economia globalizada". Os economistas advertem, porém, que essas medidas não serão suficientes para melhorar a vida de todas as companhias, além de seus efeitos de morarem.

Outra medida importante é tentar elevar o nível de poupança no país, principalmente por meio de uma reforma da Previdência. Países que poupam mais costumam ter juros mais baixos e câmbio menos valorizado. É a receita dos países asiáticos, que conseguem essa combinação porque poupam quase metade da renda, diz Pessôa.

"O câmbio relativamente depreciado dos asiáticos não é um ponto de partida, mas de chegada. Dado o alto nível de poupança doméstica e pública daqueles países, é possível perseguir uma política de acumulação de reservas sem problemas fiscais e sem pressões inflacionárias", afirma a Carta do Ibre. No Brasil, o BC tem comprado dólares pesadamente no mercado, mas há limites fiscais para uma aceleração desse movimento suficiente para produzir uma desvalorização significativa do câmbio. Neste ano, até outubro, o BC comprou cerca quase US$ 30 bilhões.

Os economistas criticam a adoção de controles de capital como instrumento para deter a valorização do câmbio. Além do efeito "pernicioso de interferir no funcionamento do mercado de capitais", a medida provavelmente seria "inócua", uma vez que a queda do dólar se deve aos fluxos comerciais, e não aos financeiros.

Uma alternativa que pode funcionar como paliativo é a adoção de medidas localizadas, como a elevação das alíquotas de importação para os setores mais prejudicados pelo impacto do dólar barato e da competição chinesa, avalia Schymura. "Uma mexida nas tarifas, para elevar a proteção de setores como calçados e têxteis, é o tipo de medida menos ambiciosa e que, portanto, tem menos potencial de causar danos", diz a Carta. A questão, é que esses mecanismos teriam que ser temporários.

Para ser eficaz, essa estratégia deveria ser combinada com as reformas estruturais, que atacariam os problemas de fundo da economia, diz Schymura. Com isso, as empresas teriam mais possibilidades de se adaptar à realidade em que o dólar ficará por muito tempo em R$ 2,20 - ou menos.