Título: O incrível presidente que encolheu tem dois anos para melhorar o seu legado
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Fonte: Valor Econômico, 10/11/2006, Internacional, p. A12

Pode não ter sido o tsunami eleitoral que alguns institutos de pesquisa vinham prevendo, mas causou, mesmo assim, um impacto razoável. A vantagem dos republicanos, na forma de mais dinheiro de campanha e mais assentos conquistados mediante reconfiguração eleitoreira de distritos eleitorais, não conseguiu livrá-los de uma sova de uma oposição com escassas propostas em termos de novas políticas e até mesmo menor probabilidade de colocá-las em prática.

Os democratas poderão não ter condições de governar, mas eles adquiriram repentinamente bastante poder negativo. A conquista democrata de quase 30 assentos na Câmara dá a Nancy Pelosi, que em breve será a primeira mulher a presidir a Câmara dos Deputados dos EUA, um controle confortável da instituição que controla a distribuição de verbas do governo. O Senado detém o poder de ratificar tratados e confirmar a nomeação de juízes, embaixadores e outras altas autoridades. De um dia para outro, a estatura de George Bush foi substancialmente reduzida - uma impressão reforçada pela apressada renúncia de seu secretário de Defesa, Donald Rumsfeld.

Mas Bush continuará presidente pelos próximos dois anos, e como ele e os democratas conviverão durante esse período será de enorme importância tanto para os EUA como para o mundo. Embora tenha sido humilhado, Bush continua sendo a figura predominante nas políticas interna e externa dos EUA. E ele tem uma última oportunidade para criar um legado mais proveitoso. A principal razão pela qual sua Presidência parece tão encolhida hoje é por ele ter se afastado para tão longe do rumo - no pesadelo do Iraque, no pantanal de corrupção de um governo conservador e gastador e nos templos divisionistas dos teocratas. Bush agora tem dois anos para encontrar a trajetória correta.

A principal oportunidade está no exterior. Embora Bush tenha se mostrado um pouco abatido ao falar ao país logo após a derrota, segundo a Constituição americana a condução da política externa e de defesa é prerrogativa exclusiva do presidente, e não do Congresso. Embora soe estranho, Bush pode sentir-se um pouco mais livre do que antes. Ele não tem pela frente nenhuma outro teste eleitoral, e não está sequer determinado a assegurar a Presidência para seu vice-presidente. E, apesar de a Europa torcer o nariz para Bush, no terreno da diplomacia ele tem a experiência a seu favor: no início do segundo semestre de 2007, ele deverá ser o líder há mais tempo no posto entre os países do G-7.

Bush sempre teve um pouco apostador. Isso deixa espaço para gestos dramáticos: de ressuscitar o processo de paz para o Oriente Médio, que ele ignorou por demasiado tempo, a um acordo com o Irã (ou, mais perigosamente, a um ataque contra os iranianos). Mas a maioria dos desafios com que os EUA se defrontam no exterior - uma Coréia do Norte nuclearizada, uma agressiva Rússia potencializada pelo petróleo, uma China em ascensão - continuam intratáveis como sempre: eles não se prestam a grandes mudanças de política; nesses terrenos, serve apenas mais da mesmo.

Isso se aplica, acima de tudo, ao Iraque. Quem esperar uma saída americana imediata ficará desapontado. Bush, assim afirma o presidente, está "determinado a ser vitorioso". A menos que estejam planejando interromper o financiamento das tropas no Iraque, uma opção impensável tão perto da próxima eleição presidencial, os democratas nada poderão fazer a respeito.

Por outro lado, as eleições foram, em grande parte, um plebiscito sobre o desempenho abaixo do esperado de seu governo na situação do Iraque. A substituição do incompetente Rumsfeld já veio tarde demais. Outra oportunidade de mudar de táticas poderá vir das recomendações do Grupo de Estudo sobre o Iraque, co-presidido por James Baker, um ex-secretário de Estado, do qual também participa Robert Gates, o substituto de Rumsfeld.

No plano doméstico, o presidente parece bastante enfraquecido. Ele teve dificuldades para conseguir a aprovação de projetos de lei no Congresso, devido a cisões em seu próprio partido: agora, isso lhe será quase impossível. É difícil prever alguma tentativa séria de atacar o maior problema doméstico dos EUA, o crescimento descontrolado dos gastos com "direitos sociais", como aposentadoria e saúde, que levarão o governo ao colapso fiscal, se não confrontados.

A bandeira do livre comércio também sofreu um revés. Os democratas provavelmente não renovarão a autoridade presidencial para negociar acordos comerciais sem emendas do Congresso ("fast-track") quando este expirar, no ano que vem, e poderão valer-se de sua maioria para minar alguns acordos de livre comércio ainda pendentes.

E é praticamente certo que ocorrerão ainda enfrentamentos na questão dos impostos. Bush quer renovar a vigência de seus cortes de impostos de 2001 (eles caducarão em 2010), mas os democratas os abominam, qualificando-os de subsídio aos ricos. Menos controvertido será um aumento no salário mínimo, inalterado há quase dez anos. O presidente já sinalizou que poderá concordar com isso.

Há mais margem para colaboração interpartidária, se os dois lados forem grandes o suficiente para ousar. Uma área promissora deverá ser a reforma da imigração, onde o avanço de Bush foi impedido, neste ano, mais pelos republicanos na Câmara (que recusaram-se a qualquer entendimento sobre oferecer cidadania americana para imigrantes ilegais) do que pelos democratas (que tentaram atrair os votos dos imigrantes).

Um esforço suprapartidário nas esferas de energia e meio ambiente é outra possibilidade; na política americana, o verde está ganhando terreno a um ritmo rápido, e não apenas na Califórnia, pioneira na tentativa de impor tetos às emissões de dióxido de carbono, mas até mesmo em lugares viciados em petróleo, como o Texas, onde empresários espertos estão cada vez mais percebendo o potencial da energia eólica, dos biocombustíveis e das fotocélulas.

Por que diabos deveriam os democratas ajudar um homem que repetidamente colocou em dúvida seu patriotismo? Em larga medida por reconhecer que não venceram as eleições em meio do mandato: os republicanos é que as perderam. Iraque, furacão Katrina, Foley (deputado suspeito de abuso sexual) - esses nomes e a prevaricação e incompetência que denotam transformaram um eleitorado bastante conservador em oposição a um partido que realizou tão pouco. Os democratas foram suficientemente espertos para posicionarem-se no centro, num momento em que os republicanos pareciam ter cambaleado para a extrema direita. Pelosi, por natureza não inclinada a posições centristas, teve sucesso em manter suas tropas em torno de uma plataforma moderada. Os democratas conquistaram muitas das cadeiras dos republicanos, especialmente no oeste montanhoso e em grandes Estados, como Pensilvânia e Indiana, escolhendo para candidatos seus quadros mais parecidos com republi-canos moderados.

A nova maioria democrata precisa ter cuidado para não jogar fora esses ganhos revertendo para a esquerda quando os prazeres mundanos da presidência de comissões parlamentares estiverem em suas mãos. Os avanços - muitos deles devidos apenas às renúncias de republicanos manchados por escândalos - poderia facilmente ser revertida. Uma importante força em favor de moderação será, provavelmente, Hillary Clinton, cuja trajetória política rumo ao centro nesta semana proporcionou-lhe uma vitória esmagadora na Nova York.

Os republicanos também deveriam buscar posicionar-se no centro. Há alguns sinais de que o conservadorismo em questões sociais atingiu um limite máximo: uma tentativa de proibir o aborto fracassou em Dakota do Sul; uma proibição ao casamento entre homossexuais foi frustrada pela primeira vez no Arizona; e em Ohio, Ken Blackwell, o "homem da Bíblia" que sonhava ser governador, desfez-se em chamas. O principal recado destas eleições, no que diz respeito a disputa presidencial em 2008, é que os EUA cansaram-se de polarização. Assim, melhoraram as perspectivas de John McCain e de Rudy Giuliani, nenhum deles conservadores convencionais.

Em sua maior parte, porém, tudo depende da disposição de Bush para mudar sua conduta. Uma presidência menor poderia ser ainda mais defensiva e introspectiva. Essa seria uma reação compreensível à "pancada" (como disse Bush) desta semana, mas errada. Do jeito como estão as coisas, Bush ficará na história como um presidente que prometeu muito, mas conseguiu pouco. Ele tem dois anos para mudar a opinião da posteridade.

(Tradução de Sergio Blum)