Título: Lições para um outro uso do capital
Autor: Guimarães, Luiz Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 09/11/2006, EU & Investimentos, p. D6

Há hoje uma revivescência do pensamento de Celso Furtado (1920-2004). Brotam seminários, organizam-se palestras, filmes são feitos e criam-se cátedras tendo sua vasta obra como programa. A retomada com vigor do estruturalismo defendido pelo maior economista brasileiro ocorre, segundo o sociólogo Francisco de Oliveira, justamente quando se torna evidente o fracasso das políticas neoliberais, do "pensamento único" globalizante que interdita o debate.

Após a morte do pensador nascido em Pombal, no sertão paraibano, ocorrida há dois anos, em 20 de novembro, intensificou-se a reavaliação do impacto de sua obra monumental. Foi rediscutida a sua influência sobre o genuíno pensamento econômico brasileiro e latino-americano.

Os seus insights criativos no estudo do processo de desenvolvimento de economias periféricas foram relidos com entusiasmo. A sua trajetória política e suas contribuições à cultura brasileira foram sopesadas mais um vez. E, no segundo semestre de 2005, o Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) organizou um seminário destinado a projetar as idéias de Furtado para o século XXI. Quem não pôde na época freqüentar o seminário tem agora a oportunidade de conhecer em livro as propostas destinadas a romper o consenso. "Celso Furtado e o Século XXI", organizado pelos professores do IE/UFRJ João Saboia e Fernando J. Cardim de Carvalho, traz ensaios e palestras apresentados no seminário por 24 especialistas.

A voz de Furtado volta a ecoar justamente quando se discutem os rumos do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva e a necessidade de superação das políticas estagnacionistas do primeiro. "O triste é imaginar que um país em construção fosse entregue ao mercado", disse Celso Furtado em entrevista publicada pelo Valor em junho de 2000.

A luta de Furtado, o objetivo central da sua vida, sempre foi a invenção de uma nação dotada de autodeterminação, cujos recursos econômicos, políticos e culturais fossem crescentes e mais equitativamente distribuídos dentro da população.

"Constatar o movimento em direção contrária ao que sempre propugnou provavelmente explica seu ceticismo e sua desilusão", escreve Fábio S. Erber, professor da UFRJ, referindo-se aos últimos anos de vida do pensador. "Celso Furtado via no desenvolvimento econômico do Brasil uma missão, um projeto de vida", afirma o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira.

Na visão de Furtado, um caminho para o desenvolvimento econômico teria de ser construído no Brasil simultaneamente a políticas destinadas a reverter a pesada concentração de renda. Nem antes, nem depois, mas junto. "Desconcentrar a renda é obra de longo prazo e de persistência, e exige que se recentre o sistema econômico no mercado interno, a fim de que o desenvolvimento não seja socialmente excludente. Com vistas a lograr esse fim, é indispensável que o Brasil adote uma política de baixas taxas de juros", diagnosticou Furtado em texto de 2003.

Furtado rejeitou a visão seqüencialista segundo a qual o subdesenvolvimento era uma etapa prévia pela qual os países precisariam passar antes de atingir o desenvolvimento. Provou que o subdesenvolvimento é, na verdade, uma condenação resultante do modo de inserção dos países periféricos ao sistema capitalista mundial. A primeira conclusão óbvia desse modelo furtadiano de ver o mundo: não há relacionamento financeiro e comercial entre países "iguais", mas um sistema de dominação camuflado por ideologias.

A globalização financeira, observa Carvalho, da UFRJ, tornou os modos de inserção internacional, que caracterizam o subdesenvolvimento, ainda mais assimétricos.

Como os países periféricos não conseguem criar moedas aceitas internacionalmente, aparentemente não lhes restam muitas outras alternativas se não a aceitação e o enquadramento nas regras do jogo definidas pelos desenvolvidos, as quais "perpetuam a subordinação", nas palavras de Carvalho.

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Furtado propunha a construção de espaços de autonomia para a adoção de estratégias de superação da assimetria. A principal delas é o estabelecimento de controles de capitais, completamente desmantelados recentemente. Não se pode permitir também que a liberalização do balanço de pagamentos crie novos e indissolúveis vínculos de dependência. O que Furtado propunha não era o isolamento, tentativas de desenvolvimento autóctone, mas a quebra das assimetrias. Para tanto, o acesso aos meios de pagamento internacionais não deveria ser feito por meio da emissão de dívidas, mas pelo recebimento de rendas (exportações).

Para que a subserviência se sustente ao longo do tempo - sempre remoçada por novos laços de dependência - será necessária a cristalização de interesses domésticos na sua manutenção.

Em crises cambiais forçadas de fora ou em movimentos destinados a interditar medidas "nacionalistas" ou "desenvolvimentistas", ou a dissuadir os governos de adotá-las, a atuação de investidores domésticos na promoção de fugas de capitais é similar à de aplicadores estrangeiros. A reprodução doméstica da dicotomia centro/periferia no conflito entre classes e grupos sociais cristaliza a dominação externa.

A globalização financeira, observa Carvalho, apenas agudiza o quadro identificado por Furtado, segundo o qual "o subdesenvolvimento não deveria ser visto apenas como um fenômeno de dominação nacional, mas também de articulação política doméstica, em que classes e seus representantes políticos reproduziriam os termos desse mesmo conflito".

A integração subordinada à ordem financeira internacional se dá por meio da liberação completa da conta de capitais do balanço de pagamentos. Trata-se da liberdade absoluta conferida ao capital para entrar e sair do país. As políticas monetária - desnecessariamente elevadas taxas de juros - e fiscal, destinada a assegurar ao Estado os recursos requeridos para pagar as dívidas crescentes e agravadas pelos juros, apenas instrumentalizam a dependência.

Migalhas sociais - como o Bolsa Família, o Fome Zero, o reajuste real do salário mínimo e a distribuição de renda disfarçada como déficit da Previdência Social - são toleradas com repugnância enquanto não ameaçam os alicerces da dependência. O antídoto a isso tudo é a inserção autônoma à globalização por meio da imposição de controles de capitais.

Bresser-Pereira enfatiza um dos pontos centrais da análise de Furtado: o consumo das elites. As classes beneficiadas pela concentração de renda não se revelam à altura de seu papel de elites. Ao copiarem os padrões americanos de consumo, não poupam para investir e endividam o país no exterior. A acusação de prática do populismo econômico, que essas classes beneficiadas usam para atacar os políticos populares, é indevida, porque é o consumo delas, e não o dos pobres, que leva ao déficit público e, principalmente, ao "populismo cambial", isto é, a valorização artificial do câmbio, em nome do combate à inflação, para facilitar o consumo de bens e serviços com considerável componente importado.

"Enquanto as elites cafeeiras do Oeste paulista e, mais tarde, as elites industriais e tecnocráticas, que surgiram entre os anos de 1930 e 1950, foram notáveis em promover o desenvolvimento nacional, as elites de hoje, alienadas, não têm projeto de nação", diz Bresser-Pereira.

No fim do seu capítulo destinado a analisar o mundo financeiro atual sob o prisma da abordagem e do ferramental criado por Furtado, Carvalho diz que "uma das lições mais importantes de Furtado é precisamente a de que a verdadeira tragédia do subdesenvolvimento pode estar mais na estreiteza de seus intelectuais e na falta de qualidade de suas lideranças políticas do que na limitação de seus meios materiais".

A visão furtadiana deveria servir de alento, mas, a julgar pela qualidade do processo eleitoral recém-concluído e dos líderes que o protagonizaram, se for mesmo assim, tão cedo o Brasil não se livra do subdesenvolvimento. Talvez na próxima geração.

"Celso Furtado e o Século XXI" - Organização: João Saboia e Fernando J. Cardim de Carvalho. Editora Manole, 445 páginas, R$ 48