Título: O acionista controlador e o abuso de poder
Autor: Lobo, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 09/11/2006, Legislação & Tributos, p. E2

A doutrina há muitos anos vem combatendo o abuso de poder de controle nas sociedades anônimas no que tange à violação dos direitos de acionistas minoritários e preferencialistas. Esse fato, tão corriqueiro, exige, nas palavras de Dominique Schmidt, professor da Universidade de Strasbourg e advogado francês, "repensar o delicado problema da proteção aos minoritários", para pôr fim a idéias que se tornaram tristemente célebres, como, por exemplo, "só o meu dinheiro é sagrado, o resto ao inferno" - palavras de um capitalista americano reproduzidas por Joaquin Garrigues, professor da Universidade de Madri - ou "o acionista é um tolo e um arrogante: tolo, porque nos dá seu dinheiro, e arrogante, porque deseja ainda receber dividendos" - frase atribuída ao banqueiro Furstenberg.

No estudo da responsabilidade do controlador por atos praticados com abuso de poder, causadores de danos à sociedade, acionistas minoritários e preferencialistas, investidores em valores mobiliários e empregados, é fundamental distinguir os "contra legem" (contra a lei) e os em "fraus legis" (fraude à lei).

São "contra legem" os que, realizados pelos administradores da companhia a mando do controlador, infringem os estatutos sociais ou a lei ou a ambos - com o atraso nos lançamentos dos livros comerciais e fiscais obrigatórios, despesas pessoais do controlador e de sua família, quebra do princípio de controle interno nas atividades de compra, contas a pagar e contas a receber, controle de estoque, operações que privilegiam empresas do mesmo grupo econômico, perdão ou remissão parcial de juros de mora, juros compensatórios e multas incidentes sobre dívidas vencidas e não pagas, sem a devida contrapartida ou motivo plenamente justificável etc.

Em "fraus legis" os que, embora formalmente incensuráveis, mas intrinsecamente prejudiciais à companhia, seus acionistas e credores, distanciam-se do espírito da lei - de que são exemplos a excessiva remuneração dos administradores, a dissolução imotivada de empresa rentável, a alteração estatutária para prejudicar minoritários e preferencialistas, destacando-se a não distribuição de dividendos por diversos exercícios seguidos.

A Lei de Sociedades Anônimas - A Lei das S.A. - no seu artigo 117, ao disciplinar a matéria, deixa claro que é indispensável que, na ação de ressarcimento de perdas e danos proposta pelo prejudicado, restem exaustivamente provados a efetiva qualidade de controlador interno, para usar consagrada expressão do professor Modesto Carvalhosa, a conduta ilícita, o dano patrimonial concreto e atual e o nexo causal ligando a ação ilegal ao dano ressarcível.

-------------------------------------------------------------------------------- Vem se repetindo, de forma alarmante, o uso, indevido e arbitrário, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica --------------------------------------------------------------------------------

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), aliás, decidiu mais de uma vez que nas demandas sobre abuso de poder do acionista controlador se aplicam os princípios essenciais da responsabilidade civil, pressupostos indefectíveis da ação de indenização (Recurso Especial nº 10.836-SP, julgado em 4 de fevereiro de 1992).

Talvez por faltarem ainda estudos doutrinários e julgados dos tribunais sobre a responsabilidade do controlador por danos causados a terceiros, taxativamente prevista no artigo 117, parágrafo 1º, alínea "e" da Lei de Sociedades Anônimas, vem se repetindo, de forma alarmante, o uso, indevido e arbitrário, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já positivada no artigo 50 do Código Civil e no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) pelos Tribunais de Justiça (TJs) do país.

Como enfatizou o deputado Ricardo Fiúza na justificação ao Projeto de Lei nº 2.426, de 2003: "Embora só recentemente tenha sido introduzido na legislação brasileira, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica vem sendo utilizado com um certo açodamento e desconhecimento das verdadeiras razões que autorizam um magistrado a declarar a desconsideração da personalidade jurídica".

A meu ver, não obstante a polêmica revisão crítica do conceito de pessoa jurídica, desde a sua rejeição na teoria pura do direito até chegar à teoria da realidade técnica ou jurídica, permanece intocada, no que tange ao direito positivo dos povos cultos, a distinção nítida, plena e absoluta entre os direitos e obrigações da empresa e os dos membros que a compõem.

Esta é a regra, legal, que vige, entre nós, e, por igual, em todos os quadrantes deste planeta. Excepcionalmente, os tribunais, sobretudo da Alemanha e dos Estados Unidos, têm se afastado desse princípio basilar para, descerrando o véu, alcançar os sócios e acionistas da pessoa jurídica para responsabilizá-los por atos fraudulentos ao direito de terceiros. Assim, creio, devem conduzir-se os operadores do direito, evitando deixar-se levar pela sedução de modismos em detrimento da correta aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Jorge Lobo é advogado especialista em direito comercial

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