Título: Acordos em casos de cartel: a experiência internacional
Autor: Farina, Elizabeth
Fonte: Valor Econômico, 08/11/2006, Opinião, p. A14

A formação de cartel é amplamente reconhecida como a mais danosa conduta antitruste e a que merece maior atenção das autoridades de defesa da concorrência. Qual o sentido, então, de se fazer acordos em processos de cartel? Quais os benefícios que acordos em casos antitruste podem trazer? Quais os riscos a serem evitados?

Esse foi um dos principais temas tratados na última reunião do Comitê de Concorrência da OCDE, realizada em outubro. Autoridades de países membros e observadores, dos quais o Brasil faz parte, debateram suas experiências sobre os procedimentos envolvidos na negociação dos referidos acordos tanto no âmbito administrativo, quanto no criminal, e os resultados atingidos com a utilização de tais instrumentos.

Apesar de o combate a cartéis ter se tornado o principal foco de atuação de um número cada vez maior de autoridades de defesa da concorrência, sua investigação demanda tempo e elevado dispêndio de recursos até que seja concluída. A adoção de instrumentos tais como os acordos de leniência tem contribuído para a identificação de um número crescente de cartéis, o que, certamente, é um resultado auspicioso para a defesa da concorrência. Mas a contrapartida desse sucesso é o assoberbamento da capacidade de processamento das autoridades antitruste, sejam elas jovens, como a da Nova Zelândia, ou experientes e consolidadas, como a dos EUA. A escassez de recursos é sempre relativa.

Frente a tal situação, os países passaram a estudar mecanismos para acelerar as investigações, economizar recursos, dissuadir a prática de cartéis e, ao mesmo tempo, proteger os direitos das partes sob investigação. Os acordos, denominados plea barganing ou plea agreements, no âmbito criminal, e settlement agreements, no âmbito civil e administrativo, têm sido adotados para resolver essa difícil equação por um número cada vez maior de países, sejam eles de tradição jurídica anglo-saxônica ou continental. Durante a reunião, países como Alemanha e França, assim como Inglaterra e Austrália, trouxeram suas experiências.

De fato, diferenças substanciais de recursos e tempo para conclusão das investigações foram observadas entre as jurisdições que possuem mecanismos de acordo em casos de cartéis e as que têm que percorrer todo o processo formal, estando ainda sujeitas a recursos e revisão pelo Judiciário. Em um mesmo caso, envolvendo um mesmo cartel, a diferença pode chegar a até 10 anos ou mais entre o momento do acordo feito em uma jurisdição e a decisão final em outra.

Diferentes arranjos institucionais abrigam tais acordos: 1) a autoridade de defesa da concorrência é um órgão de natureza administrativa e o acordo é feito na esfera administrativa; 2) a decisão dos casos antitruste é tomada pelo Judiciário, sendo o acordo de natureza judicial; e 3) uma terceira hipótese em que, apesar de o órgão concorrencial ser de natureza administrativa, o acordo é levado ao Judiciário e feito no âmbito judicial.

Os acordos em cartéis são mais comuns em jurisdições onde a condenação é criminal, como nos EUA e Canadá. No entanto, jurisdições onde a decisão é civil ou administrativa também têm adotado procedimentos similares, embora de maneira mais restritiva, tais como Austrália, França, Nova Zelândia e África do Sul.

Nos EUA, onde o acordo de leniência só pode ser firmado com a primeira empresa que se apresenta para denunciar o cartel, os acordos (plea bargaing) têm sido usados para obter a cooperação das empresas que chegam em segundo, terceiro e demais lugares subseqüentes e estão dispostas a oferecer provas adicionais. Nesse caso, a confissão de culpa é exigida, mas em contrapartida há redução da multa ou mesmo das condenações criminais, como o tempo de reclusão de executivos e o encerramento do processo acusatório.

-------------------------------------------------------------------------------- É mais eficaz encerrar processos por acordo do que mantê-los durante anos sem conclusão ou pendentes na Justiça --------------------------------------------------------------------------------

Em outros países onde o acordo de leniência pode beneficiar mais de uma empresa, os acordos são também admitidos com o objetivo de reduzir o tempo de conclusão do processo e liberação de recursos humanos e financeiros das autoridades antitruste.

Na França, a decisão antitruste tem caráter administrativo. Em 2001, a França passou a admitir acordos negociados em casos antitruste. Para ser beneficiado por uma redução de multa, o representado deve concordar em não contestar as acusações formuladas contra ele, e concordar em alterar sua conduta. Tecnicamente, não é exigida do acusado uma admissão de culpa, mas ele não pode contestar sua responsabilidade nas condutas infrativas que lhe são imputadas. O procedimento (procédure de transaction) é aplicável a todos os casos antitruste, em especial a condutas unilaterais e só recentemente foi aplicado a cartéis.

Outras jurisdições, como Nova Zelândia ou a África do Sul, também utilizam acordos em condutas anticompetitivas unilaterais com o mesmo objetivo: ganhar eficiência sem perder eficácia no sentido de dissuadir práticas prejudiciais à concorrência. Na Nova Zelândia, onde os acordos são judiciais, os descontos podem chegar a mais de 50% do valor da multa que seria aplicado sem o acordo. Ainda assim, a experiência tem sido positiva ao desobstruir a autoridade antitruste e antecipar o pagamento da sanção imposta.

Essa solução, entretanto, não está livre de problemas e vários perguntas merecem análises adicionais e respostas adequadas aos arranjos institucionais próprios de cada país: a) qual o grau de discricionariedade atribuído à autoridade antitruste - definição da redução da multa em montante fixo (maior previsibilidade) ou variável? ; b) em que momento se deve aceitar a proposta do acordo? ; c) como avaliar a colaboração das investigadas? ; d) deve-se exigir uma confissão da prática ou é suficiente que o acusado não conteste as acusações formuladas contra ele? ; e) deve ser usado como forma de antecipar o pagamento da multa, em caso de condenação administrativa pendente de revisão judicial? ; f) qual o poder dissuasório de um acordo?

De modo geral, considerou-se que é mais eficaz encerrar processos de forma prematura garantindo pagamento de multa, dentre outras penalidades, do que manter centenas de processos em andamento, durante vários anos, sem conclusão ou pendentes de decisões judiciais. No entanto, o desconto tem que preservar o caráter punitivo da multa, de forma a preservar o poder dissuasório das decisões antitruste. Mais do que isso, deve haver uma ameaça crível de que a autoridade antitruste poderá impor sanções substanciais na ausência do acordo. Nesse sentido, acordos não são substitutos para quaisquer decisões administrativas em casos complexos, nem para toda e qualquer revisão judicial que possam postergar a aplicação efetiva das sanções. Construir um sistema sancionatório crível continua sendo tarefa primordial na defesa da concorrência, segundo as experiências internacionais. Isso significa que os acordos devem ser usados de maneira muito criteriosa em jurisdições mais jovens, exigindo a alteração do comportamento dos representados.

Ainda que várias questões continuem pendentes, restou clara a convergência entre os participantes de que há benefícios líquidos a serem colhidos com o desenvolvimento dessa prática.

Nos EUA, onde esse instrumento é utilizado há mais tempo, 90% dos casos de cartéis são encerrados por meio de acordos, confirmados pelo Judiciário. A experiência de países onde as decisões são cíveis ou administrativas é bem mais limitada. No entanto, há um crescente interesse por esse tipo de instrumento e um número cada vez maior de países que vêm adotando essa prática como forma de tornar mais eficientes e eficazes as decisões antitruste.

Recente transação judicial celebrada pelo CADE, ainda que não envolvendo um caso de cartel, assim como outros acordos que possam ser assinados no futuro, estão na esteira dessa experiência internacional.

Elizabeth M. M. Q. Farina é presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE.