Título: O reexame das patentes pipeline no Brasil
Autor: Reis, Renata e Chaves, Gabriela C.
Fonte: Valor Econômico, 07/11/2006, Legislação & Tributos, p. E2

O Brasil vem sofrendo críticas pontuais de segmentos ligados a empresas farmacêuticas transnacionais acerca de um clima desfavorável, sentido pelos investidores, gerado pela insegurança jurídica e instabilidade dos marcos regulatórios nacionais de proteção intelectual. Paradoxalmente ao argumento de fragilidade das leis nacionais, constata-se que o mundo nunca em sua história conheceu marcos regulatórios tão rígidos na seara da apropriação do conhecimento, com a obrigatoriedade do ajuste dos países a acordos internacionais, na contramão da liberalização crescente e da ampla circulação de bens e serviços.

Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1994, novas regras passaram a dominar o intercâmbio comercial entre as nações. Nessa ocasião, o discurso que introduzia as novas regras ligadas à propriedade intelectual era quase sempre pautado no aumento substancial de transferência de tecnologia e do desenvolvimento local, sobretudo no campo da pesquisa. No entanto, o acordo firmado no âmbito da OMC e que aglutina atualmente 149 Estados-membros, por onde circulam 90% das riquezas comercializadas no mundo, não proporcionou a distribuição da tecnologia e sim sua concentração em países centrais, tendo em vista sua natureza restritiva. O Acordo TRIPS surge no cenário internacional como um veículo de enrijecimento normativo e padronização imposta sobre limites amplos de proteção.

Nesse novo cenário, o Brasil alterou sua Lei de Propriedade Industrial em 1996, incluindo em seus artigos 230 e 231 as chamadas patentes pipeline, constituindo uma disposição temporária por meio da qual foram aceitos depósitos de patentes em campos tecnológicos não reconhecidos até então, mesmo que tais pedidos já não cumprissem o requisito de novidade. Os depositantes tiveram um ano, pela nova lei, para depositar seus pedidos no Brasil. Esse mecanismo impactou fortemente a saúde pública, já que possibilitou o patenteamento de substâncias obtidas por processos químicos, produtos químico-farmacêuticos, medicamentos de qualquer espécie e seus processos de obtenção ou modificação.

Em um ano de vigência da possibilidade de depósito de patentes pipeline foram depositados cerca de 1.200 pedidos. Atualmente mais de 700 patentes pipeline já foram concedidas e cerca de 500 pedidos ainda podem ser deferidos, pois estão em andamento no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) ou aguardam concessão no exterior (condição sine qua non, segundo o artigo 230 da Lei de Propriedade Industrial). Esses números nos fazem refletir sobre a importância de olhar cuidadosamente, em nome do interesse público, para essas patentes, que à primeira vista parecem ultrapassadas, mas que impactam e continuarão a impactar o acesso a medicamentos essenciais de milhões de pacientes no Brasil. No caso dos medicamentos de aids, por exemplo, diversas patentes só expiram em 2012 ou mais.

-------------------------------------------------------------------------------- Vários medicamentos de enfermidades graves são protegidos no Brasil por um instituto contrário ao acesso aos medicamentos --------------------------------------------------------------------------------

O instituto das pipeline suplanta os requisitos legais de patenteabilidade vigentes no país, desrespeita em muitos casos a medida provisória que instituiu a anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e como corolário, trata de forma diferenciada inventores nacionais - que continuaram tendo que cumprir os requisitos legais e sofrer exame técnico. O instituto, ademais, não é razoável e nem compatível com a lógica do sistema de proteção intelectual, ao retirar do domínio publico um invento já conhecido e analisado por outro país que não o Brasil, afrontando o princípio da territorialidade das patentes. A clarividência do absurdo desse instituto fez com que ele não fosse exigido sequer no TRIPS, vetado na Argentina, não incluídos na lei da Alemanha, Japão, Itália e Espanha, para citar apenas alguns países.

As empresas farmacêuticas afirmam que ampliaram significativamente seus investimentos no país com o reconhecimento das patentes farmacêuticas. Alguns números podem ilustrar, no entanto, que seus investimentos foram recompensados com institutos vis como patentes pipeline: uma pesquisa realizada pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2006 constatou que as indústrias farmacêuticas transnacionais levaram do Brasil R$ 70 milhões, com uma estimativa de envio de apenas 5% de royalties (arbitrada para fins de cálculo, pois os royalties em geral são muito maiores). Essa soma diz respeito apenas a quatro fármacos antiretrovirais, sob patentes pipeline (abacavir, efavirenz, lopinavir/r e nelfinavir) que pertencem ao protocolo do Ministério da Saúde para tratamento de HIV/aids.

Devemos, por fim, enfrentar um questionamento recorrente feito por setores da indústria: a quem interessa rever um instituto vigente entre 1996 e 1997, diante de novos problemas emergentes no mundo da propriedade industrial? Interessa aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e aos governantes e gestores de políticas públicas de saúde que administram recursos cada vez mais escassos. Vários medicamentos de aids, câncer, asma crônica e outras enfermidades graves são protegidos no Brasil por um instituto despudoradamente contrário ao acesso aos medicamentos. A pergunta a ser devolvida é: a quem serve o silêncio sobre as patentes pipeline? A quem interessa a manutenção dos lucros, sem contrapartida social e sem relativização entre processos e produtos essenciais e não essenciais?

Renata Reis e Gabriela C. Chaves são, respectivamente, advogada e farmacêutica do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos

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