Título: Em discussão, a qualidade do gasto
Autor: Leo, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 06/11/2006, Brasil, p. A2

Chama-se "Agenda Fiscal e de Inovação Gerencial" o conjunto de propostas em discussão na equipe econômica, sob a coordenação do Ministério do Planejamento, que será debatido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o ministério, em breve, para garantir o esperado ajuste nas contas e as bases do sonhado crescimento econômico do segundo mandato. Nessa agenda, uma das novidades em debate é a mudança de critérios para classificar despesas e diferenciar investimento de gastos de "custeio", o dinheiro usado na manutenção da máquina administrativa.

A medida deve vir acompanhada de um pacote de "busca de eficiência no gasto público", que prevê, por exemplo, mudanças na forma de calcular, no Orçamento, a parcela das verbas destinadas à saúde - o que deve exigir emenda constitucional. É um debate com ar de polêmica. Nos gastos sociais, o que é custeio ou "despesa corrente", e o que é investimento? Por que a construção das instalações físicas de uma fábrica é contabilizada nas empresas como investimento e a de um hospital, ou um posto de saúde preventiva, como custeio?

Prospera na área econômica, inclusive em gabinetes mais simpáticos à ortodoxia, a tese de que o Brasil está "defasado" em matéria de classificação de gastos e que isso dificulta a avaliação das prioridades. A futura classificação, como investimentos, de despesas hoje consideradas correntes seguirá um modelo adotado na Inglaterra e na Espanha e justificaria, por exemplo, o uso de receitas "não-continuadas", verbas extras, para bancar esse tipo de gasto. Isso, por si só, não garante controle dos gastos e deve abrir uma grande discussão sobre o real engajamento do governo no corte de despesas - já que a tendência é ter critérios mais flexíveis na contenção desses gastos com "investimento".

A essa discussão, o governo deverá responder com algumas novidades, entre elas a maior uniformização dos índices usados para reajuste das despesas no Orçamento, para conter aumentos automáticos de verbas. É um dos aspectos da agenda a ser apresentada pelo governo, que inclui, como se sabe, a prorrogação e aumento da Desvinculação das Receitas da União, a DRU - que nada mais é que a autorização, aos gestores, para gastar, em outras rubricas, verbas orçamentárias que, por lei ou pela Constituição, estariam necessariamente vinculadas a despesas específicas, como educação ou saúde.

A DRU permite ao governo remanejar 20% das chamadas verbas vinculadas, o governo pensa em ampliar essa fatia e chegar a até 35% em oito anos. Mas a desvinculação planejada pelo governo Lula não se limita à DRU: no esforço para dar "racionalidade" às despesas, a proposta de "uniformizar parâmetros" de indexação incluirá, por exemplo, a tentativa de garantir às verbas da saúde uma proteção contra a corrosão inflacionária, mas eliminar sua vinculação ao PIB (hoje, os gastos da União com a saúde são corrigido por um percentual da variação do PIB).

-------------------------------------------------------------------------------- Governo quer desvincular 35% das verbas --------------------------------------------------------------------------------

Na Agenda Fiscal e de Inovação Gerencial, que ganhou suas primeiras versões ainda em junho, são previstas medidas a serem anunciadas como forma de dar credibilidade e transparência ao compromisso de austeridade do governo, como a proposta de uma medida provisória vinculando os superávits financeiros da União ao abatimento da dívida pública. Serão explicitadas e regulamentadas as transferências de recursos a Estados e municípios e criado um novo orçamento público, o "orçamento indicativo", que trará os recursos necessários para dar seguimento a obras e programas em execução. Esse novo orçamento, apresentado também como uma medida de "transparência", deverá servir para fiscalização pública da elaboração do projeto de lei anual de Orçamento e a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Com essas medidas, a equipe econômica quer ter credibilidade para apontar ajustes necessários nas listas de despesas em setores delicados como o dos gastos sociais. Hoje, com as vinculações obrigatórias, é cada vez maior o recurso a artifícios contábeis para registrar como despesa em saúde ou educação, por exemplo, gastos que dificilmente teriam essa classificação, se olhados por critérios menos flexíveis.

As propostas até agora conhecidas dessa agenda fiscal e gerencial do governo dão apenas uma idéia da complexidade e detalhamento do debate que vem por aí. É salutar que uma das palavras mais citadas por envolvidos nessa discussão seja "transparência". Como costuma dizer o presidente da República, não há mágicas, nesse campo. E, espera-se, também não cabem ilusionismos.

O debate na política externa

A escancarada comemoração na imprensa argentina e na Casa Rosada devem ajudar a desfazer o mito alimentado pelos críticos da política externa, de que teria sido criado enorme mal-estar com o governo da Argentina e os países vizinhos devido à obsessão do Itamaraty de Lula por um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como define um diplomata argentino, nesse ponto os dois governos concordaram em discordar, não há conflitos por isso. E quase todos os outros países sul-americanos manifestaram apoio à pretensão brasileira. A visita, nesta semana, do recém-eleito presidente do Peru, Alan Garcia, deverá confirmar que, apesar do alarido em torno de Hugo Chávez, a referência, na região, ainda está no Palácio do Planalto.

Apesar de declarações em contrário, os críticos bem informados do propalado antiamericanismo das autoridades do Itamaraty reconhecem, reservadamente, que nenhum governo no Brasil aceitaria facilmente as condições exigidas pelos Estados Unidos para a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, como novas restrições ao uso de marcas e de produtos patenteados e fim de prioridade a empresas nacionais nas compras do governo. Se o Itamaraty pode ser culpado de algum erro na discussão da Alca, é o de ter perdido a batalha de relações públicas e tomado o lugar dos Estados Unidos como vilão no colapso das negociações.

Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras

sergio.leo@valor.com.br