Título: "Não cabe ao PT dizer o que o governo deve fazer"
Autor: Junqueira, Caio
Fonte: Valor Econômico, 06/11/2006, Política, p. A10

Um dos seis sobreviventes da bancada de 20 ministros petistas escolhidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Dulci, é o mais forte candidato à presidência do PT. O ministro, que nunca envolveu-se diretamente nas disputas internas de seu partido, não assume a candidatura, mas já tem plataforma de campanha: o PT não deve estender seus tentáculos sobre a totalidade do governo, como fez no início do atual mandato, precisa de um novo estatuto para incorporar a força adquirida na Federação e deve buscar uma equação para a retomada do crescimento que não traga de volta o risco de inflação.

O esforço em não se posicionar como candidato decorre da forma como enxerga o processo de reestruturação do partido. Para ele, o necessário debate interno deve ser primeiro sobre o conteúdo das mudanças para, depois, discutir os nomes. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Valor no seu gabinete, no quarto andar do Palácio do Planalto, a um lance de escadas do presidente da República.

Valor: No primeiro mandato, o PT foi uma das origens dos principais problemas que o governo enfrentou. O que esperar do partido no segundo mandato?

Luiz Dulci :O presidente quer colaborar com o processo de reestruturação do partido, mas não pretende impor nenhuma decisão. Agora, o próprio PT, por meio do seu quadro partidário e lideranças, quer fazer sua reestruturação. Há uma maioria a favor desse processo e que deseja também uma sintonia com o governo. Há quase um consenso dentro do PT de que o partido precisa estar sintonizado de modo criativo com o governo, que o partido deve colaborar, o que não significa nem interferir no cotidiano do governo e nem deixar de ter a sua elaboração autônoma.

Valor: Essa sintonia passa por aceitar a redução na participação dos ministérios?

Dulci: O número de ministros que o PT tem hoje já é bem menor do que no início de 2003, e o partido não só aceitou como apoiou essa decisão. Queremos fazer agora um governo programático de coalizão. O PT está de pleno acordo com isso. Um governo no qual os diversos partidos aliados tenham maior participação nas decisões e ao mesmo tempo maior responsabilidade na sustentação do governo, seja no Parlamento, seja perante os diferentes segmentos sociais.

Valor: Em que o PT deve ser diferente no segundo mandato?

Dulci: O PT deu uma contribuição valiosa no primeiro mandato, com contribuição programática, quadros técnicos e políticos para o ministério. Elaborou fortemente a sustentação do governo no Parlamento. Grande êxitos do governo, como o Bolsa Família, tiveram a contribuição de membros do PT. O partido já deu uma importante contribuição. Mas evidentemente não cabe ao partido dizer o que o governo deve fazer. Quem toma decisões no governo é o presidente da República e sua equipe de auxiliares, até porque o governo não é só do PT. Acho que no segundo mandato o PT vai se relacionar com o governo de modo muito mais unitário. Está mais consciente de seu papel, que é sustentar criativamente o governo e oferecer sua contribuição programática e política, sem tentar interferir no cotidiano administrativo de cada uma das áreas de governo porque este não é o papel dos partidos enquanto tal.

Valor: Como buscar essa unidade partidária?

Dulci: O PT saiu vitorioso das urnas. Foi o partido mais votado, elegeu cinco governadores, tem uma forte bancada na Câmara, sem falar da eleição do presidente. Com isso, tem mais autoridade e mais força para promover uma profunda reestruturação, que é necessária. Uma reestruturação que não deve começar por nomes. Sou de opinião que deve ser antecipado o Congresso do partido do segundo semestre de 2007 para o primeiro semestre. E deve ser promovido um vasto debate nacional não só com a base, mas também com os movimentos sociais, com a intelectualidade, com a juventude, com os mais diversos setores que têm o PT como referência. É necessário um vasto debate sobre o projeto político do PT, que precisa ser atualizado porque foi elaborado há muitos anos e a vida brasileira evoluiu muito nesse período. É preciso dar respostas novas a problemas novos. A economia brasileira em 1979, quando começamos a organizar o PT, não é a de 2007. A organização social brasileira também se alterou nesse período. A classe operária do ABC não é mais a mesma e isso vale para os diferentes segmentos da sociedade. Regiões que eram exclusivamente agrícolas hoje são industriais. Pequenas cidades se tornaram metrópoles. O Brasil se integrou fortemente ao mundo nesse período. Então há uma série de desafios novos.

Valor: As mudanças devem ser em torno do que?

Dulci: Sobre o debate político do partido, o funcionamento interno, o método de direção, a organização de base, a relação com os movimentos sociais. Sobre o modo mais criativo de sustentar o governo do presidente Lula. Precisamos debater a própria concepção de partido e temos toda autoridade para fazer isso porque o PT não saiu derrotado das eleições e tem um capital político muito grande na sociedade. O que precisamos é de um projeto político e de uma direção à altura da base admirável que temos.

Valor: Para essas alterações será necessário reformar o estatuto?

Dulci: Acredito que alguns desses aspectos que mencionei só poderão ser adequadamente equacionados com alterações também das regras de funcionamento do partido. Tem muita coisa que talvez devamos modificar.

Valor: Quais?

Dulci: Parece-me importante valorizar mais a base partidária na tomada de decisões. O PT tem base, ela existe, freqüenta o partido. E o partido cresceu muito, tornou-se fortemente nacional. Isso fez com que os canais de participação da base nas decisões do partido, que foram pensados no início dos anos 80, hoje não dão conta mais, não são tão porosos quanto precisam ser. Um outro aspecto: o militante de base precisa de informação para exercer sua cidadania partidária. Precisa também de formação. E ele pede isso, cobra isso. Os militantes, sobretudo de origem mais humilde, querem opinar sobre o projeto econômico do partido, sobre a reforma política, sobre nossa proposta para política externa.

Valor: Como fazer isso?

Dulci: Já existem instrumentos de formação e comunicação interna. Existe um setor dedicado à formação política. Mas precisamos investir muito mais, sobretudo porque estamos governando o país. A responsabilidade do PT é maior do que quando éramos oposição. Então temos que fazer um esforço para elevar o nível de informação política e de qualificação política dos nossos militantes e dos nossos quadros intermediários. Hoje os meios eletrônicos facilitam muito criar um circuito de informação e de consulta à internet que pode permitir que um filiado se manifeste e faça chegar sua opinião. Os meios técnicos hoje podem facilitar um funcionamento interno mais dinâmico e poroso à manifestação da base.

Valor: Essa maior participação da base nas decisões do partido passa pela chamada "despaulistização" da legenda?

Dulci: São Paulo sempre deu um contribuição importante ao PT. Não faria nenhum sentido excluí-lo dos órgãos dirigentes do partido. Não se trata disso, mas de avançar de maneira mais vigorosa em um processo de nacionalização do PT, no qual São Paulo cumpre um papel importante. O núcleo central partidário era predominantemente paulista porque o partido funcionava em São Paulo. Não era fácil que pessoas pudessem abandonar seus afazeres e os movimentos que lideravam, que, afinal de contas, constituíam a fonte de sua legitimidade. Era difícil se transferirem para São Paulo e virarem funcionários do partido. A estrutura de funcionamento do PT foi pensada em uma época em que o partido não era nacional. Hoje ele está implantado nos 27 Estados e é um protagonista da vida política do país. Por isso precisamos pensar uma direção que seja capaz de expressar essa realidade, evitando qualquer bairrismo, qualquer provincianismo, e levando em conta o peso que os diferentes Estados têm na vida econômica, cultural e política do país, assegurando que os vários "Brasis" se expressem na vida partidária em todos os níveis: municipal, estadual e nacional. Hoje temos estruturas consolidadas, lideranças com grande prestígio, espaços institucionais importantes nos 27 Estados do país.

Valor: O sr. defende que a sede do partido seja somente em Brasília?

Dulci: Sim. Hoje temos uma sede nacional em Brasília e outra em São Paulo O que ocorre é que o crescimento do partido demanda uma maior descentralização. Dizendo de outra maneira, a incorporação de lideranças de várias regiões do país ao núcleo dirigente nacional deve ser feita pelo positivo. Acabamos de ganhar o governo da Bahia, do Pará, do Sergipe. Tivemos excelente desempenho em outros Estados onde no passado nossa presença era modesta. Temos hoje lideranças de dimensão nacional em várias regiões do país. Isso nos dá a oportunidade de nacionalizar. Mas nós vamos fazer pelo positivo, não pelo avesso. Se depender de mim, essa reestruturação política e renovação do grupo dirigente não será feita pelo avesso, contra determinadas pessoas, e sim a favor do partido. Não há ninguém, nenhum dirigente do PT que controle o partido. O poder no PT felizmente é muito pulverizado, o que é bom. As eleições confirmaram isso. Então não há ninguém -supondo que alguém quisesse barrar um movimento renovador-, não há ninguém no partido que tenha individualmente força para fazer isso. Ao contrário, existe uma poderosa vontade da base partidária de que se faça essa reestruturação profunda. Não basta discutir os conteúdos se não houver renovação do grupo dirigente, mas não basta também trocar pessoas se não houver uma vasta discussão de conteúdo.

Valor: O sr. é candidato a presidente do partido, para que possa liderar esse processo?

Dulci: Como já disse, seria danoso para esse processo necessário de reestruturação começar pelos nomes que poderiam assumir a direção. O debate deve ser de conteúdo político, organizativo e administrativo. Se começarmos pelos nomes, quaisquer que sejam eles, vai acabar prejudicando e até mesmo inviabilizando o profundo debate de conteúdos, sem o qual não haverá verdadeira reestruturação.

Valor: No ano passado, o ministro Tarso Genro assumiu o partido sob a bandeira da reestruturação e não conseguiu encampá-la. O sr. não teme o mesmo?

Dulci: Aquele momento é muito diferente do de hoje. Ali havia uma crise de um grupo dirigente. Hoje estamos em condições mais favoráveis do que aquelas.

Valor: Essa participação maior das bases sociais no partido também pode ser esperada em relação ao governo?

Dulci: Aí é outra coisa. Muitos militantes sociais brasileiros ou são de outros partidos ou não são de partido nenhum, preferem atuar em ONGs. Durante o primeiro mandato foi deflagrado um processo inédito de participação social na definição das políticas públicas. Os poucos conselhos setoriais que haviam foram reformulados, ampliados e passaram a ter um papel muito mais ativo na vida do governo. As diversas áreas onde não havia conselho, criamos. Não há hoje uma só área que não tenha um conselho com poder de propor, avaliar e influir na definição de políticas públicas. Nesses conselhos, as várias organizações sociais do setor têm participação ativa. Além disso, fizemos um gigantesco processo de conferências que envolveu diretamente mais de 2 milhões de pessoas, considerando as etapas municipal, estadual e depois os eventos-síntese a nível nacional. Para você ter uma idéia, a política de direitos da mulher foi elaborada com a participação direta de mais de 140 mil mulheres em mais de 2 mil municípios brasileiros. Na política de combate à desigualdade racial, mais de 100 mil pessoas participaram pelo país afora. A política nacional de saúde foi elaborada por mais de 300 mil pessoas. A política de valorização do salário mínimo foi decidida entre o governo e as centrais sindicais. Todas. Inclusive a Força Sindical, presidida pelo Paulinho, que, do ponto de vista partidário é nosso adversário. O presidente recebeu ao longo de quatro anos mais de quatrocentas vezes lideranças populares, sem falar das entidades que ele tomou iniciativa de visitar. E não apenas aquelas com identidade programática com o governo. Ele recebeu ou visitou inclusive entidades mais críticas, como o MST. Quase todas as lideranças sociais do país apoiaram a reeleição do presidente no primeiro turno.

Valor: O MST não.

Dulci: O MST liberou o voto no primeiro turno e se engajou e recomendou voto no segundo turno, o que também é perfeitamente razoável. No primeiro turno alguns movimentos apoiaram a senadora Heloisa Helena e o senador Cristovam Buarque. No segundo turno, com a reunificação do campo popular, passaram também a nos apoiar.

Valor: O que os movimentos sociais podem esperar do segundo mandato?

Dulci: Não há movimento social sem reivindicação, mas achamos que ela pode ser acrescida de uma postura propositiva. Grande parte das organizações sociais brasileiras se constituíram na luta contra ditadura e pela redemocratização, ou seja, com uma postura muito reativa diante do Estado. A questão central era afirmar a independência em relação ao Estado. Continua sendo muito importante isso, mas para que a sociedade avance é muito importante que, além de reivindicar, os movimentos também proponham. E hoje os movimentos estão muito qualificados, não só do ponto de vista social. Têm uma capacidade técnica muito grande. Os movimentos podem participar como participam as entidades empresariais dos debates sobre todas as grandes questões do país. E não apenas do salário mínimo, por mais importante que ele seja. Tem ONGs no Brasil de alta qualidade científica e técnica, com quadros de primeiríssima linha, que poderiam assumir inclusive funções dirigentes em qualquer lugar. Então queremos manter esses canais como os conselhos, as ouvidorias, as conferências, mas ainda criar canais novos e convocar aos debate de questões novas.

Valor: Como o quê?

Dulci: Queremos que as entidades populares participem, por exemplo, do debate da política externa. Queremos que os movimentos sociais conheçam melhor a política econômica, o funcionamento do Estado. Gostaríamos que participassem do debate orçamentário. É possível que grandes organizações sindicais, culturais, religiosas, empresariais, de caráter nacional, participem de maneira ainda mais ativa da elaboração dos projetos do governo, respeitada suas autonomia e a independência. É possível que eles influam de maneira mais direta na elaboração programática do governo e do país. O que queremos é que a participação direta não se dê apenas nos períodos eleitorais. Quem não ajuda a construir não se torna co-responsável. Precisamos de um nível de co-responsabilidade que faça com que as pessoas se engajem na execução das políticas. O risco das democracias contemporâneas é a indiferença, a alienação. E depois as pessoas não se sentem representadas. Enfim, pretendemos fortalecer os canais para que as grandes organizações sociais brasileiras participem mais, e quando eu falo participação social não estou me referindo apenas às organizações populares, estou falando também das confederações da indústria, da agricultura, do comércio. Tudo aquilo que é não-governamental no país.

Valor: Em relação à economia, quem no governo deve vencer a disputa entre monetaristas e desenvolvimentistas?

Dulci: Essa disputa dentro do governo não existe. No governo do presidente Lula não há política de ministros. A política é do presidente, é do governo. O que há é um debate sobre a maneira mais adequada de assegurar crescimento acelerado preservando a inflação baixa e a responsabilidade fiscal. Não há no governo ninguém que admita a volta da inflação. É um consenso no governo de que a estratégia para acelerar o crescimento e torná-lo mais vigoroso tem que incluir a manutenção da inflação baixa e a responsabilidade fiscal. É um debate diferente do que acontecia no governo Fernando Henrique. Lembro-me de que alguns ministros aquela época admitiam inflação de dois dígitos, dizendo que não era tão perniciosa assim. Não é o nosso caso. O que queremos é uma nova equação, com inflação baixa. Se admitíssemos a volta da inflação estaríamos jogando fora todos os esforços que fizemos. Não existe nenhuma hipótese deste governo adotar uma estratégia de crescimento que abra mão do rigoroso controle da inflação. Agora, nós também não aceitamos a idéia de que para controlar a inflação é preciso desistir de crescer.