Título: EUA duvidam de conversão de Ortega na Nicarágua
Autor: Souza, Marcos de Moura e
Fonte: Valor Econômico, 03/11/2006, Internacional, p. A7

Ele diz ser outro homem. De revolucionário marxista-leninista e líder dos rebeldes sandinistas nos anos 80, Daniel Ortega, 61, que lidera as pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais deste domingo na Nicarágua, virou um católico fervoroso, ganha a vida como empresário, não fala em nacionalização ou em confiscos de propriedade privada e jura (por Deus!) que jamais voltará a pegar em armas.

Mesmo assim autoridades americanas - de quem Ortega já foi um ferrenho inimigo, principalmente sob a gestão do presidente Ronald Reagan - já deixaram claro que não acreditam nessa alegada metamorfose. E vêm fazendo um jogo pesado contra sua candidatura. Um jogo que muitos observadores, incluindo autoridades brasileiras, classificam de intervencionismo puro e simples.

Recentemente, o diretor-adjunto para América Latina e Caribe da USAid, agência americana de ajuda ao desenvolvimento, Adolfo Franco, disse que, se Ortega vencer, os recursos enviados para a Nicarágua poderão ser reduzidos. A chamada Conta do Milênio, que dá US$ 178 milhões ao país, também foi colocada em xeque pelos EUA.

O embaixador americano no país, Paul Trivelli, fez gestões junto aos dois partidos liberais para que lançassem um candidato único para enfrentar Ortega com mais força. Acusou-o de não ser um democrata e disse que seu governo faria retroceder uma série de avanços obtidos nos últimos anos. "Uma coisa é ser realmente um democrata. Outra coisa é fazer o que os sandinistas têm feito, distorcendo e manipulando a democracia em benefício partidário e pessoal."

Além disso, um grupo de congressistas americanos já fala em propor uma lei para impedir que imigrantes nicaragüenses façam remessas de dinheiro dos EUA para suas famílias - fluxo que representa a segunda maior fonte de recursos do exterior do país.

Oficialmente, o Departamento de Estado americano tem evitado tomar posições nas eleições. Mas é difícil encontrar quem acredite que as manifestações de diplomatas americanos na Nicarágua sejam descoladas de Washington.

Nas palavras da adida de imprensa da embaixada, Krintin Stewart, citadas pela imprensa nicaragüense, "se algum governo estrangeiro tem relações com organizações terroristas, como os sandinistas tiveram no passado, a lei dos EUA nos permite aplicar sanções". E acrescentou: "Em uma hipotética vitória de Ortega, seria revista toda a política dos EUA com a Nicarágua. Toda quer dizer toda".

"Parece que os EUA não conseguem aprender algumas lições básicas. Enquanto o governo Bush foi contido e profissional com relação a outras eleições na América Latina este ano, a Nicarágua foi a exceção", disse ao Valor Michael Shifter, do centro de estudos Diálogo Interamericano, de Washington.

"O governo Bush não conseguiu resistir à tentação de se intrometer no processo eleitoral da Nicarágua", disse. E acrescentou: "Novamente os EUA demonstraram uma atitude exagerada, justo num momento em que o anti-americanismo atinge um grau elevado".

O candidato preferido de Washington é Eduardo Montealegre (Aliança Liberal Nicaragüense) um ex-banqueiro, educado nos EUA, que disputa a segunda colocação nas pesquisas com José Rizo (Partido Liberal Constitucionalista). Os dois flutuam na casa dos 15% a 20% das intenções de votos. Ortega vem oscilando entre 30% e 35% nos últimos meses. Pelas regras eleitorais, o candidato é eleito no primeiro turno com 35% dos votos, contanto que garanta uma vantagem de no mínimo 5 pontos em relação ao segundo mais bem colocado. Se tiver 40% dos votos, o candidato é declarado eleito.

Rivais dizem que um governo de Ortega, inspirados pelo apoiador Hugo Chávez, seria marcado por ineficiência e radicalismo. "Há um sentimento de medo numa parte da população que se lembra, por exemplo, do período dos confiscos. Mas Ortega nega que isso vá acontecer, e suas propostas econômicas não incluem declarações contra o livre mercado, contra a propriedade privada", diz a embaixadora do Brasil na Nicarágua, Vitória Cleaver. O sandinista prega sim uma renegociação com o FMI, mas não rompimento. E quer rever os termos do acordo comercial entre EUA e América Central (Cafta).

Ortega começou a causar arrepios em Washington em 1979, quando ao lado de outros rebeldes armados da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) derrubou a violenta ditadura de Anastásio Somoza, que tinha o apoio dos EUA. Ao longo dos anos 80, ele dirigiu o país com a ajuda de Cuba e da antiga URSS, e combateu os Contras, grupos rebeldes apoiados e armados pelos EUA. A guerra deixou 30 mil mortos e foi uma das mais sangrentas no contexto da Guerra Fria no continente.

A lembrança desse período foi explorada durante a campanha eleitoral, encerrada na quarta-feira, pelos adversários de Ortega. Na TV, a propagandas exibiram imagens de corpos amontoados e testemunhos do líder sandinista em seus anos rebeldes.

Para convencer o eleitorado de que tudo isso é passado e que o país não está mais dividido, Daniel Ortega, fez uma costura política inusitada e aparentemente bem sucedida. Trouxe para ser seu candidato a vice o ex-porta-voz dos Contras, Jayme Morales Carazo. Nos anos 80, a casa que pertencia a Carazo - um belo imóvel que ocupa um quarteirão no bairro de El Carmen, de Manágua - foi confiscada pelo regime sandinista. Ortega vive até hoje no imóvel. Seu companheiro de chapa teria sido indenizado recentemente.