Título: O crescimento desordenado da advocacia
Autor: Norgren, David P.
Fonte: Valor Econômico, 03/11/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Em uma cerimônia de entrega de carteiras profissionais, ouvi o presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) discursar perante bacharéis e pais entusiasmados sobre o orgulho do "maior colegiado da América Latina" contar com aproximadamente 250 mil advogados no Estado e sobre "novos mercados para a advocacia como direito do consumidor e direito ambiental", com vagas para todos que trabalharem duro. Infelizmente não concordo com essa visão otimista, uma vez que o cenário atual anuncia um panorama mais sombrio.

Explico. O ponto de saturação do mercado de trabalho para advogados foi atingido há muito. Não há vagas suficientes para todos os ingressantes e as existentes muitas vezes não lhes proporcionam condições satisfatórias, obrigando-os a aceitar postos de trabalho incompatíveis com suas aptidões profissionais e ambições financeiras.

Mas há o outro lado da moeda. Com 500 mil inscritos na OAB e milhares de novos advogados a cada ano, há de se esperar que o nível de preparo e a qualidade dos serviços diminuam. Há advogados sem preparo para atender às necessidades dos clientes, prestando serviços de má qualidade. Quem de nós nunca teve em suas mãos alguma peça má escrita, até mesmo anedótica? Quem nunca leu um contrato mal redigido? Isso prejudica os clientes e toda a categoria profissional, pois implica na queda de prestígio do advogado frente à sociedade.

A solução para o problema passa pela reformulação do acesso à profissão. As regras atuais do jogo são por demais permissivas e possibilitam o acesso de pessoas sem os requisitos necessários ao seu exercício. Atualmente, são duas: diploma em direito e aprovação no exame da Ordem. O primeiro é tradicional em países com tradição civilista. O segundo é justificado pela necessidade de algum controle em um país com mais de mil cursos de direito, boa parte incapaz de formar um bom profissional. O exame tem duas partes: uma com questões de múltipla escolha que abrange dez áreas do direito, outra composta de questões discursivas e redação de peça, escolhida entre direito civil, penal, do trabalho ou tributário.

Apesar de reclamações sobre as exigências do exame, o nível deste continua assustadoramente baixo. Alunos medianos das melhores faculdades conseguem aprovação sem maiores esforços, os índices de aprovação o revelam. Sem limite de vagas, o crescimento contínuo e desregrado da categoria profissional é possível. A possibilidade de refazer indefinidamente o exame dá ao mais despreparado dos candidatos uma chance real de aprovação após a décima tentativa. Como a aprovação é condição suficiente para advogar, não há período probatório nem curso de formação obrigatório. Sem a presunção de sugerir uma solução única, talvez não seja má estratégia adotar elementos de sistemas que funcionam melhor que o nosso. Exemplifico.

Na França, país com 60,5 milhões de habitantes e Produto Interno Bruto (PIB) 3,4 vezes o nosso, havia, em 2002, 42.609 advogados (com receita média de 62.605,00 euros anuais), 50% destes inscritos em Paris (com receita de 80.804,00 euros). Advogados são inscritos no "barreau" e atuam em escritórios de advocacia, pois juristas que trabalham em empresas são chamados "juriste d'entreprise" e não precisam de inscrição. Além da disparidade entre as duas economias nacionais, que fator explicaria a melhor situação do advogado francês? O acesso à profissão.

Após uma formação jurídica mínima de quatro anos, deve-se ser aceito em um centro de formação profissional de advogados. Verdadeiro concurso público com vagas limitadas, o exame pode ser prestado por três vezes. A formação dura 18 meses. Os dois primeiros semestres consistem em cursos e redação de projeto pedagógico individual e o terceiro em estágio profissional. Ao fim deste, há um novo exame. Os reprovados podem refazer o exame uma vez. Os aprovados recebem um certificado de aptidão à profissão de advogado, com o qual pedem sua inscrição no barreau.

Há cerca de 115 mil advogados no Reino Unido, entre "barristers" e "solicitors". Aqueles são 14.623 e aproximam-se do estereótipo dos filmes, vestidos de toga e peruca, pleiteando perante juiz e júri. São profissionais liberais organizados em câmaras, divididas em grupos especializados e tiram dos honorários sua fonte de renda. Dos 100.938 solicitors no Reino Unido, 39% atuam em Londres. São organizados em escritórios cujo número de sócios varia de dois a centenas e onde a maior parte das atividades é consultiva, como a elaboração de contratos e a estruturação de operações. Sua média salarial é de 48.000,00 euros e o faturamento estimado de todos os escritórios é de 15,987 bilhões de euros.

O acesso a ambas as carreiras começa com a obtenção de diploma em direito ou, para diplomados em outras áreas, a realização de um curso de conversão de um ano. Em seguida, deve ser feito um curso de prática legal com duração de um ano. Candidatos a barrister aprovados já possuem status de advogados, mas seu aprendizado continua por um ano em uma câmara, com o acompanhamento de um tutor no primeiro semestre. Ao fim, o barrister pode se candidatar a uma vaga na câmara, mas somente um em três é bem sucedido. Candidatos a solicitor devem realizar um estágio de dois anos em três áreas do direito e seguir, paralelamente, um curso de aptidões profissionais. Com sua conclusão, o candidato recebe um certificado que autoriza a prática da profissão.

Quais as conclusões que se tirar desses exemplos? Em primeiro lugar, com regras que restrinjam o acesso à profissão somente aos candidatos mais bem preparados, os clientes ganham em qualidade de serviço prestado. Isso leva a um maior prestígio da profissão. Em segundo, com menos profissionais no mercado, a oferta de serviço diminui para uma demanda que se mantém constante e a elevação do nível salarial do advogado seria evidente (não que esse seja o aspecto mais importante da profissão, mas é preciso deixar de lado a hipocrisia e admitir que todos têm lares para sustentar). Todos os lados seriam beneficiados: a sociedade, que poderia contar com um serviço de melhor qualidade, e os advogados, que ganhariam em prestígio e poderiam ser justamente recompensados pela importante função que exercem.

David P. Norgren é advogado, mestrando pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduado em direito comparado pela Université de Paris II - Panthéon-Assas

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