Título: Dongguan, esta cidade tem poluição zero
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 12/12/2006, Especial, p. A14

Tarde de chuva em Dongguan, no sul da China, perto de Hong Kong. Esta é a única grande cidade da costa leste que não registra chuva ácida. O controle da emissão de gases chega a 92%. A meta é atingir 100% em 2007.

Quem desconfia de milagres, e especialmente de milagres chineses, vai ficar menos incrédulo se viajar duas horas e meia de avião de Xangai a Guangzhou, capital da província de Guangdong (Cantão), e, ao seguir de ônibus por mais duas horas rumo a Hong Kong, decidir ficar no meio do caminho, em Dongguan: uma cidade de que poucos ouviram falar no mundo e que não está nos mapas vendidos nas livrarias de Pequim.

Dongguan acumula a média de crescimento econômico de 22% ao ano nos últimos 25 anos, sua população explodiu de pouco mais de 100 mil habitantes em 1970 para 7,5 milhões em 2006. Sozinha, pelo porto de Hong Kong, Dongguan exportou no ano passado US$ 52 bilhões. Importou US$ 42 bilhões. É o quarto maior exportador dentre os municípios chineses, depois de Xangai, Shenzen e Suzhon.

Mas o Departamento de Relações Exteriores (turismo, em verdade) do município exibe com orgulho um outro dado: nesta cidade não há poluição. E mostra um diploma de organismo das Nações Unidas que conferiu a Dongguan, em 2005, o título de cidade agradável para se viver (liveable community).

Na década de 70 do século passado, Dongguan era um aglomerado de vilas de camponeses e pescadores. Os primeiros cultivavam, em economia de subsistência, arroz, colza, bananas, cítricos; os segundos viviam da pesca no único agrupamento urbano da região, Humein, sobre o Rio Pérola, que deságua em Hong Kong, no Mar da China. Nessa época, a exportação de Dongguan era principalmente de gente. Seus jovens aproveitavam a proximidade e fugiam para Hong Kong e dali, em maioria, se espalhavam pelo mundo. Alguns dos que permaneceram em Hong Kong enriqueceram e são agora os maiores investidores na cidade em que nasceram ou onde nasceram seus pais.

O primeiro deles, filho de pescador, em 1978, um ano após a China ter-se tornado uma nação aberta a investimentos estrangeiros, instalou em pleno campo uma fábrica de bolsas de mulher, o governo deu-lhe crédito, terreno, providenciou uma estrada, luz elétrica e água. Mão-de-obra havia, abundante e barata. Foi o começo. Outros expatriados chegaram de Hong Kong, e, até 1984, o capital privado, financiado por diversos organismos do governo, investira US$ 50 milhões em 2,6 mil projetos nos 2 mil quilômetros quadrados de terras do município.

Na década de 90 chegaram as multinacionais, centenas delas, e hoje Dongguan, segundo dados do Banco Mundial, produz 40% dos discos rígidos de computador consumidos no mundo, 20% dos scanners e 16% dos teclados. De uma pioneira fábrica que copiava modelos europeus para fabricar bolsas, a cidade avançou para a especialização em montagem de componentes para computadores e peças para celulares. Nokia e Samsung são as maiores empresas estrangeiras no município. Se o seu celular for Nokia, provavelmente alguns de seus componentes passaram por Dongguan (e o software da musiquinha de chamada, um som reconhecido universalmente, desenvolvido ali perto, em Guangzhou, capital da Província). Laptop Samsung? Certamente foi montado em Dongguan, em grandes e limpas fábricas, ao lado de estradas seguras e bem conservadas, semi-escondidas pelas muitas árvores, geralmente plátanos. Algumas fábricas ostentam no pórtico de entrada a logomarca da empresa estrangeira, outras não. Estas últimas produzem por encomenda para que o cliente ponha no produto a sua própria marca.

Algumas delas trabalham para a Nike e a Adidas, pois Dongguan também produz calçados, além de roupas e móveis. As fábricas com vistosos letreiros em chinês fazem questão de destacar em alfabeto romano o certificado de qualidade ISO.

Os trabalhadores vêm do meio rural, da própria Província no início e agora de todo o país. "Eles passam por um ou dois meses de treinamento para a linha de montagem e se adaptam com facilidade", diz Ye Lan Fang, gerente-geral da Xinhuwei Industry Co., Ltd., fabricante de calçados de segurança marca Tiger, vendidos no mercado interno e exportados para Estados Unidos, União Européia e Rússia, ao preço médio de US$ 15. Com mil empregados na linha de montagem, sua exportação é de 3 milhões de pares de botas por ano. A fábrica também opera para outras marcas e Ye diz que está preparada para atender pedidos de outros tipos de calçados, até dos mais refinados. E ela mostra duas salas de exposição repletas de modelos de calçados (também de bolsas femininas) à disposição de importadores.

Na linha de montagem, quatro fileiras interligadas nas extremidades, a sola do sapato começa a andar, recebe salto, cobertura, cola em suas diversas fases, e chega com cadarço amarrado às caixas de papelão, que já têm carimbado o destino da exportação. As máquinas são importadas da Itália e de Taiwan. Os silenciosos operários, na maioria mulheres jovens, recebem, segundo Ye, 1,2 mil yuans (US$ 150) por mês, e os solteiros podem morar nos dormitórios que a empresa mantém no quarto andar e comer no refeitório do térreo, tudo de graça. Mas ela não permite ("não autoriza", traduz a intérprete) entrevistar os trabalhadores. "Não posso interromper a marcha da produção", afirma Ye.

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Se em Pequim e Xangai há um monótono caos organizado, tal é o tumulto continuado de multidão de pedestres, carros, caminhões, bicicletas, motos, buzinas, num enfumaçado cenário em fundo infinito de prédios, cebolões, minhocões, vias expressas, a monotonia de Dongguan é de ordem inversa. Anda-se por avenidas largas de três pistas em cada mão, mais acostamento, e a visão lateral é de árvores e, por trás delas, prédios de arrogância arquitetônica bem mais discreta que os de Xangai. Algum movimento se vê no centro, na hora do almoço, quando as pessoas com mais recursos podem acrescentar ostras e patas de caranguejo ao festival de pratos de comida chinesa de todos os tipos e quase todas as procedências (já não se comem cachorros na China: os chineses dizem que essa mania é dos coreanos). No fim da tarde, mais para o leste da cidade, perto do Wal-Mart - portentoso, com uma sala de entrada que mais parece a de um cinemão de antigas épocas - nota-se algum tumulto entre pedestres, carros, motos, bicicletas e só então se acredita que Dongguan tem realmente os habitantes que as estatísticas dizem que tem.

Wang Zhaohong, diretor da Comissão de Desenvolvimento e Reforma de Dongguan, explica como foi possível crescer sem provocar maiores danos à natureza: "Exatamente porque a cidade não existia antes de o crescimento chegar." Houve planejamento desde o início. O governo queria instalar na região um centro manufatureiro para exportação. Investiu em infra-estrutura e incentivou os investimentos de terceiros, promoveu joint-ventures entre o próprio Estado e os estrangeiros ou entre estrangeiros e empresários nacionais. "O investimento externo nessa época era necessário, pois Dongguan, de precária economia agrícola, não tinha acumulação primitiva de capital", diz o economista Wang, 38 anos, na única evocação do tradicional linguajar marxista testemunhada na China em 21 dias de presença no país.

O Estado ofereceu tudo e impôs regras. Indústria poluente não podia instalar-se na região - em outras da China poderia, como ocorreu no início da industrialização no Ocidente, pois o desenvolvimento precisa de aço, cimento, carvão, papel e celulose. Em Dongguan, as fábricas de cimento teriam de instalar filtros e as que prometeram e não cumpriram foram multadas e tiveram de fechar.

Em Dongguan há um tipo de avenida diferente da que serve para carros e pedestres. Avenida das linhas de transmissão de energia. São dezenas delas, com suas torres, levando cavalos de força para a indústria, de um lado para outro, cruzando-se nos bairros e também no centro. Os produtos de granja são cultivados num cinturão verde ao redor da cidade. A energia vem do delta do rio Pérola, do sistema integrado nacional e também do gás natural importado da Austrália e distribuído por gasoduto para toda a Província de Guangdong. Grande parte das indústrias reaproveita a água que consome.

Numa entrevista coletiva para mais de 40 jovens jornalistas locais em que um funcionário da diretoria ambiental do município anunciou que a meta para o próximo ano é atingir padrões ideais (100%; por enquanto está a 92%) de controle da emissão de gases, a pergunta mais embaraçosa foi: "O que os senhores vão fazer contra o barulho do escapamento dos carros?" "Há padrões a serem obedecidos e os contraventores serão multados", foi, em síntese, a resposta. A falta de assunto deixa os jornais muito chatos, como deve acontecer em cidades do interior da Suíça.

Há pobreza em Dongguan? Há e está quase encoberta. Nos arredores de Humein, um trepidante distrito industrial especializado na confecção de roupas, no caminho que leva ao museu dedicado à resistência à invasão inglesa durante a Guerra do Ópio (1839-1843), por trás de carcomidos prédios de três andares, seqüelas da China de Mao, há habitações precárias (de alvenaria) e gente pelos becos aparentemente desempregada. Lixo nas esquinas e escuras oficinas de remendões de carros. Nada que escandalize um latino-americano.

Foi em Humein que a Guerra do Ópio começou, depois que Lin Zexu, um enviado do imperador Dao Guang, mandou queimar o ópio com que ingleses e americanos envenenavam o povo chinês. A armada britânica invadiu a China e, ao fim de quatro anos, com a rendição e o tratado de Nanquim, a China perdeu a ilha de Hong Kong para a Inglaterra. Lin Zexu é herói nacional e estátua num parque de Humein, à frente do museu da resistência.

Fotos com casais em pose ao pé da estátua de Lin costumam ter o céu, ao fundo, poluído por guindastes. Eles estão chegando, para apagar os últimos vestígios da Dongguan de 1970.