Título: Uma nova agenda para a reforma agrária
Autor: Graziano, José
Fonte: Valor Econômico, 27/06/2007, Opinião, p. A14

Não é compreensível que o debate de um assunto tão delicado como a reforma agrária permaneça centrado exclusivamente em metas quantitativas a nível nacional. Numa sociedade que - felizmente - ainda possui mais de um quinto da sua população rural, e que, ademais, três em cada quatro dos seus 5600 municípios gravita em torno da terra, condenar a reforma agrária à lata de lixo da história seria uma temeridade.

No seu primeiro mandato, o presidente Lula assentou 381 mil famílias, 95% da meta prevista no Plano Nacional da Reforma Agrária, com investimentos de R$ 4,1 bilhões na obtenção de terras. Em volume de área desapropriada e número de assentados, é o melhor desempenho da história. E, acompanhado de um conjunto articulado de ações que inclui investimentos na construção de estradas e pontes - da ordem de R$ 2 bilhões; em educação e luz elétrica para 132 mil famílias; expansão do crédito aos assentados no valor de R$ 871 milhões só em 2006; e contratação de 1.771 servidores do Incra e novas superintendências, sem falar na expansão simultânea de 72% nos financiamentos à agricultura familiar.

Faria um bem inestimável ao futuro político e social do país, agora, se energia equivalente fosse acompanhada de um debate substantivo sobre a reforma agrária mais adequada ao Brasil do século XXI.

Em seu livro "A Questão Agrária Brasileira", de 1962, Ignácio Rangel, que hoje empresta seu nome à recém-inaugurada sala de cooperação internacional do Incra em São Paulo, alertava que o crescimento da produtividade capitalista no campo - confirmada anos depois pela expansão do agronegócio - tenderia a acelerar a liberação de forças produtivas na agricultura, tanto em termos de mão-de-obra quanto de áreas ociosas. Em princípio, essa disponibilidade de recursos impulsionaria um maciço projeto reformista no campo, não fosse por um traço particular do capitalismo periférico brasileiro: o uso da terra como reserva de valor, dada a instabilidade da moeda e a ausência de mecanismos financeiros confiáveis para abrigar a riqueza monetária.

O controle da inflação, com a inundação subseqüente da liquidez internacional, incentivou a sofisticação do mercado financeiro nacional nos últimos anos, sugerindo que o caminho preconizado por Rangel teria encontrado finalmente como deslanchar e derrubar o preço da terra. Todavia, não é essa a realidade que se esboça no horizonte. É certo que o agro latino-americano mudou nos últimos anos. O latifúndio carcomido, embora persistente em algumas regiões, já não é a referência de poder e de produção graças a uma pressão combinada de movimentos sociais e de agricultura empresarial.

O formato da questão agrária, portanto, modificou-se. Novas condicionalidades somaram novos dilemas à construção de um desenvolvimento mais eqüitativo no campo. O advento do aspirador de compras chinês, por exemplo, permitiu uma valorização das commodities agrícolas que tinham seus preços em queda desde os anos 70. Isso deu novo impulso à mecanização nas etapas pré e pós-colheita, acelerando ainda mais a redução de demanda por mão-de-obra agrícola. Como resultado, os preços da terra iniciaram um novo ciclo de valorização, agora não mais por conta das incertezas monetárias, mas de uma espiral altista insuflada pela pantagruélica demanda asiática e as especulações sobre o futuro promissor dos biocombustíveis.

-------------------------------------------------------------------------------- Um plano de adensamento da reforma agrária no Nordeste contribuiria para modificar os indicadores sociais de todo o país --------------------------------------------------------------------------------

Dados recentes do Instituto de Economia Agrícola de São Paulo indicam que o preço da terra de primeira subiu quase 30% no Estado entre 2001/2006. Ao mesmo tempo, num excelente trabalho apresentado em recente seminário promovido pela FAO, em Santiago do Chile, técnicos do Incra trouxeram preocupantes informações sobre os custos da reforma agrária no biênio 2004/05: o custo médio do assentamento de uma família foi de R$ 39,2 mil utilizando-se a desapropriação; e de R$ 65,6 mil se por aquisição dos imóveis, sugerindo que essa última via caminha para um ponto de esgotamento. A literatura internacional recomenda que o custo da terra não exceda a um terço para liberar outros investimentos essenciais. No caso brasileiro, a terra representa mais de 40%, mesmo quando o processo se dá pela desapropriação, sugerindo que, depois de um recuo nos anos 90, esse ativo retomou a trajetória altista - que uma estratégia ampliada de aquisições de imóveis rurais só faria agravar.

Outra informação importante do Incra é que na região Nordeste o peso do terra mantém-se muito abaixo da média nacional, com um custo de R$ 25 mil por família na desapropriação e R$ 40 mil no caso da aquisição.

Abre-se aqui uma oportunidade para o país repensar a filosofia e a geografia da reforma agrária nos próximos anos. Uma estratégia de concentração regional da reforma agrária - a exemplo do que se fez na Itália no pós-guerra - teria no Nordeste sua fronteira privilegiada, ademais se favorecida pelas oportunidades criadas pelo biodiesel e pelas obras do rio São Francisco.

O Nordeste concentra 50% da população rural brasileira. Abriga 50% da pobreza do país. Um plano bem-sucedido de adensamento da reforma agrária nessa região contribuiria favoravelmente para modificar os indicadores sociais de todo o país, além de regenerar a pertinência dessa agenda no desenvolvimento brasileiro. Retomar os perímetros irrigados, combinados com a idéia de Rangel de uma reforma agrária não essencialmente agrícola, contribuiria muito para reagrupar famílias de bóias-frias que estão perdendo seus miseráveis empregos sazonais.

José Graziano Da Silva é professor titular de Economia da Unicamp e atualmente Representante Regional da FAO para América Latina e Caribe. Foi ministro especial de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) do primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.