Título: Muito além da política monetária
Autor: Barros, Luiz Carlos M. e Miguel, Paulo Pereira
Fonte: Valor Econômico, 27/06/2007, Especial, p. A16

Temos mencionado há algum tempo a importância do ajuste das contas externas para o processo de redução acelerada da inflação e da taxa de juros real. O choque externo positivo - que já dura quatro anos - reduziu expressivamente o endividamento externo líquido e hoje o país vive uma situação de ampla disponibilidade de divisas.

A redução da volatilidade de nossa moeda e a percepção, cada vez mais difundida nos agentes econômicos, de que o novo nível de câmbio real tem boas chances de permanecer por muito tempo, alongaram o horizonte de previsibilidade e induziram o setor privado a iniciar um processo de reformulação das cadeias produtivas.

O resultado mais visível e analisado deste processo é o aumento acelerado das importações. Ao permitir que a demanda agregada cresça mais rápido que a oferta doméstica, as importações têm tido papel relevante para o controle da inflação. Esta foi a justificativa do Copom para aumentar o tamanho do corte de juros em sua última reunião, mesmo tendo em vista a aceleração da demanda doméstica e o aumento da utilização de capacidade em alguns setores.

Esta é a grande diferença em relação a 2004. Naquele momento o setor externo contribuía positivamente para o crescimento, pressionando a capacidade instalada, enquanto agora seu resultado líquido se soma à oferta interna no atendimento à demanda. Apesar do canal adicional de oferta proporcionado pelo setor externo estar estabelecido desde o início de 2006, o que em nossa visão teria permitido a queda mais rápida dos juros, é compreensível que o Banco Central tenha atuado com cautela, aguardando a confirmação da permanência deste fenômeno.

Neste sentido, vale mencionar algumas das objeções levantadas ao papel das importações e analisar o aumento da utilização da capacidade da indústria, já que são estes os riscos principais ao cenário de inflação baixa no médio prazo. Dado o crescimento acelerado da demanda interna, alguns argumentam que o ritmo necessário de crescimento das importações para evitar pressões inflacionárias no médio prazo é implausivelmente alto. Outros mencionam que a inflação internacional, ou, pelo menos, a variação dos preços de importação nos principais países do mundo, já estando próxima à inflação brasileira, indica que o efeito desinflacionista das importações seria pequeno ao longo do tempo. São questionamentos justos e que merecem atenção de nossa autoridade monetária, mas há outros que também precisam ser considerados.

Em primeiro lugar, mesmo com taxas de inflação similares, é provável que durante certo período haja uma diferença no nível de preços entre um fornecedor local e outro - chinês, por exemplo - recém-contratado. Afinal, sob o ponto de vista da empresa brasileira, por que mudar o fornecedor se o preço - ajustado por qualidade - não for menor, ainda que sua variação ao longo do tempo seja próxima à inflação nacional? Ou seja, pode estar havendo uma mudança de nível em muitos itens intermediários de nossa cadeia produtiva. Nos bens finais isso é claro, já que permanece a deflação em bens duráveis, incluindo automóveis, mesmo com crescimento de vendas superior a 20% ao ano.

Outro fator é que a exposição internacional da economia eleva a competição interna, limitando o poder de preço do fornecedor nacional, ainda que as importações cresçam menos em um momento subseqüente. É evidente que está havendo um movimento de convergência para patamar maior de abertura após um longo período de atrofia, sendo plausível que o ritmo de crescimento das importações em relação ao da demanda interna perca força em algum momento. Tendo sido estabelecida uma relação comercial antes inexistente, a espada do importado continuará presente, forçando o produtor nacional a adotar uma estratégia de mercado que não seja puramente elevar preços. Há que se considerar ainda que a contínua valorização do câmbio real nos últimos três anos atua no sentido de contrair a demanda agregada, compensando, ainda que em parte, a redução da taxa de juros real já implementada pelo Banco Central.

-------------------------------------------------------------------------------- Brasil experimenta hoje em amplitude inédita os efeitos da inserção internacional no mercado de bens --------------------------------------------------------------------------------

No momento atual de grandes transformações, a visão microeconômica torna-se cada vez mais importante, sendo complemento fundamental à visão agregada. O caso do aumento do nível de utilização de capacidade da indústria (Nuci) é exemplar. É fato que está havendo aumento do Nuci em muitos setores, mas alguns deles trazem exatamente o tipo de informação que não pode ser desprezada. Tomemos o caso de vestuário e calçados, cujo Nuci subiu 3 e 5 pontos percentuais nos últimos 12 meses terminados em abril, respectivamente. Este aumento de capacidade se dá por conta de fechamento de fábricas e, em alguns casos, transferência de operação para outros países, visando justamente fornecer ao Brasil em melhores condições.

É evidente que este aumento do Nuci não é propriamente inflacionário, pois decorre justamente da concorrência internacional que substitui a capacidade local. Alguns diriam que o setor de calçados é pequeno e não reflete a dinâmica da economia, que está experimentando ocupação de capacidade no agregado e, especialmente, nos setores de alimentos e bebidas e máquinas e equipamentos, ambos com peso importante. É verdade, mas verifiquemos o caso específico de máquinas e equipamentos: a inflação permanece baixa, em torno de 3% ao ano, apesar do aumento do Nuci para patamar similar ao de 2004, quando a inflação foi superior a 15% na média do ano. O gráfico ao lado ilustra bem a diferença.

Não estamos argumentando que o fenômeno é permanente nem que as defasagens do afrouxamento monetário não sejam relevantes, mas apenas que há uma diferença no processo de formação de preços que precisa ser entendida.

Há ainda a questão do aumento do produto potencial decorrente da aceleração dos investimentos e da produtividade, que é outra área cercada de incertezas. Muitos tendem inconscientemente a associar produtividade ao setor industrial, até pelo fato de ser este o único com dados suficientes para uma medição aproximada. Tende a ficar de fora da análise o setor de serviços, justamente onde está o principal risco para a inflação no médio prazo.

A verdade é que não se conhece com precisão a dinâmica de produtividade e capacidade ociosa neste setor. Um indicador por excelência, neste caso, é o mercado de trabalho que, apesar do bom dinamismo, não parece estar sujeito à pressão demasiada. O desemprego ainda é alto, em torno de 10%, e, mesmo tendo em vista o crescimento de salários reais no ritmo próximo a 5% ao ano, não há explosão nem escassez (a não ser em algumas categorias especializadas, problema que aflige muitos países emergentes). Especificamente no setor industrial, o chamado custo unitário do trabalho (que desconta a produtividade do crescimento da remuneração) ainda se mantém inferior à taxa de inflação.

Outra medida seria uma avaliação setorial da intensidade de uso da infra-estrutura, que parece alta. Mas o setor privado tem feito um bom trabalho em muitas frentes, apesar das eternas indefinições do governo federal. Além disso, o apetite - mundial, diga-se - dos fundos privados por operações de infra-estrutura e a redução da restrição financeira dos governos estaduais também viabilizará novos investimentos em breve.

Enfim, é preciso uma análise mais aprofundada dessas transformações, que apenas mais recentemente ganharam velocidade. Se antes nossa experiência com globalização era condicionada apenas pelo lado financeiro, e sob condições adversas em função da fragilidade das contas externas, atualmente o Brasil está experimentando em amplitude inédita os efeitos da inserção internacional no mercado de bens e as conseqüências positivas de um período longo de menor volatilidade.

No que se refere à taxa de juros real e ao espaço de crescimento da economia brasileira sob essas novas condições, realmente estamos em território desconhecido, o que obviamente demanda cuidado e responsabilidade dos encarregados pela política monetária. Justamente por isso, é fundamental que o resto do governo pare de operar contra o Banco Central e passe a contribuir para uma estratégia integrada de política econômica.

A realidade atual de termos de troca favoráveis, mobilidade de capitais e gastos públicos sempre crescentes impõe uma contínua pressão de apreciação da taxa de câmbio real, com impactos negativos em muitos setores. A melhor forma de combater esta pressão sem comprometer a dinâmica da inflação e o crescimento econômico é executar uma política fiscal contracionista com redução de impostos, objetivo não tão difícil na atual conjuntura de forte crescimento da arrecadação. O controle da despesa reduziria a pressão de apreciação cambial e liberaria espaço na demanda agregada para o investimento, enquanto a queda da carga tributária contribuiria para a redução das distorções microeconômicas e o aumento da produtividade.

Luiz Carlos Mendonça de Barros e Paulo Pereira Miguel são economistas da Quest Investimentos