Título: Os limites do poder normativo da Anvisa
Autor: Castro, Carlos R. Siqueira
Fonte: Valor Econômico, 27/06/2007, Legislação & Tributos, p. E2

No mês de novembro de 2006, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu uma consulta pública com vistas à edição de dois regulamentos técnicos para fins de disciplinar a "propaganda de bebidas alcoólicas", bem como a "oferta, propaganda, publicidade, informação e práticas correlatas, cujo objeto seja a divulgação ou promoção de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional".

A proposta de regulamentação visa restringir, mediante variadas técnicas de inibição de consumo, a oferta e a propaganda de bebidas alcoólicas, refrigerantes, refrescos artificiais e de alimentos considerados não-saudáveis. Neste sentido, proíbe, por exemplo, a divulgação, direcionada à criança, de brindes e prêmios que sejam condicionados à aquisição de alimentos não-saudáveis. Além disso, veda a utilização das expressões imperativas do tipo "beba", "experimente", "compre", "tome" na publicidade de bebidas alcoólicas. Por outro lado, impõe a veiculação de algumas advertências como: "Este alimento possui elevada quantidade de açúcar. O consumo excessivo de açúcar aumenta o risco de desenvolver obesidade e cárie dentária". De igual modo, impede que se associe a propaganda de bebidas alcoólicas "a esporte olímpico ou de competição, à condução de veículos e a imagens ou idéias de maior êxito ou sexualidade". Quanto à propaganda de guloseimas, fica vedada a utilização de figuras, desenhos, personalidades e personagens que sejam cativos ou admirados pelo público infantil. Determina, ademais, a restrição de horário da propaganda de tais produtos em rádio e televisão, a qual somente pode realizar-se entre as 21 horas e 6 horas.

Não se discute aqui a legitimidade das intenções de tal proposição de natureza infralegal e regulamentar. Também não se questiona o axioma constitucional de que o exercício de direitos e liberdades individuais não apresenta caráter absoluto e que estes podem ser legalmente restringidos de forma a compatibilizar-se com o exercício de outros direitos fundamentais ou com os superiores interesses gerais e coletivos da sociedade. Cabe, por certo, ao Estado democrático de direito a competência legislativa para implantar programas de educação alimentar e coibir situações de abuso ou nocivas à saúde pública. É o caso específico das normas restritivas da publicidade de bebidas alcoólicas, cigarro e alimentos não saudáveis e que possam causar malefício à saúde e ao bem-estar de crianças e adolescentes. Tanto assim é que a Constituição Federal, em seu artigo 22, inciso XXIX, inscreve na competência legislativa privativa do Congresso Nacional a edição de leis sobre propaganda comercial.

Já no artigo 220, inciso II, a Constituição Federal prescreve que "compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente". O parágrafo 4º, seguinte, preceitua que "a propaganda de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso". Por fim, por força do artigo 170 do estatuto supremo, a restrição de atividade econômica lícita só pode dar-se com base em ato legislativo formal.

-------------------------------------------------------------------------------- As deliberações das agências devem guardar estrita observância à Constituição, às leis e aos decretos do presidente --------------------------------------------------------------------------------

Tais disposições constitucionais estabelecem uma autêntica reserva da lei formal nesta matéria de sensível interesse público, a qual só pode ser disciplinada, primariamente, por um ato legislativo próprio, ou seja, por uma lei do Congresso Nacional. Com efeito, não é dado à agência reguladora do setor - ou seja, à Anvisa - o poder de editar normas que restrinjam, sem prévio lastro legislativo, a atividade econômica de produção, consumo e veiculação da propaganda de tais produtos. As normas ditas regulamentares são subalternas à lei e por isso não podem extrapolá-las, tampouco supri-las quando exigida pela Constituição a sua edição. De outra parte, a competência normativa conferida às agências de regulação pelas respectivas leis orgânicas constitui atribuição regulamentar de segundo grau, eis que inconfundível com o poder regulamentar de primeiro grau, a cargo dos chefes de Executivo nos três níveis de governo da federação, o qual resulta diretamente do texto basilar da Constituição Federal, segundo seu artigo 84, inciso IV.

Assim, as deliberações ou os regulamentos técnicos editáveis pelas agências reguladoras devem guardar estrita observância à Constituição Federal, às leis e aos decretos regulamentares do presidente da República. Neste sentido, em 1998 decidiu, com acerto, o Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 1.668 do Distrito Federal, que a delegação legislativa de competência normativa à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), como prevista no artigo 19, incisos IV e X da Lei nº 9.472, 1997, subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e uso dos serviços de telecomunicações.

Por estas razões, e sem prejuízo de questionamentos legítimos que podem ser suscitados à luz do princípio da proporcionalidade, os projetos de regulamento técnico apresentados pela Anvisa para constranger o exercício de atividade econômica, ainda que em prol da saúde pública, afiguram-se inconstitucionais, uma vez que visam positivar normas restritivas de caráter secundariamente regulamentar, em matéria de reserva legislativa do Congresso Nacional. Esta análise crítica será submetida, pelo autor, para apreciação do plenário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Carlos Roberto Siqueira Castro é advogado, sócio sênior do escritório Siqueira Castro Advogados, professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutor em direito público e conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

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