Título: Preocupação com decisões do Cade que acabam na Justiça
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 26/06/2007, Opinião, p. A14

A Companhia Vale do Rio Doce obteve, na quinta-feira, liminar no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que suspende decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) que, no entendimento do colegiado, era essencial para que fosse preservada a livre competição em um dos setores mais importantes da economia. A polêmica começou depois que a Vale comprou oito mineradoras concorrentes.

Segundo a decisão do Cade, a Vale tem duas opções: a venda da mineradora Ferteco ou a perda do direito de preferência na compra de minério de ferro da Casa de Pedra, mina de propriedade da Companhia Siderúrgica nacional (CSN). Essa não é a primeira vez que o cumprimento - ou a reforma - da decisão é adiado, e certamente não será a última. Liminares vêm procrastinando o desfecho do caso desde o seu julgamento original pelo tribunal de defesa da concorrência, em agosto de 2005.

O episódio também não é único. O Valor mostrou, na sua edição do dia 16 último, que 81,8% das condenações por cartel e práticas anticoncorrenciais são suspensas pela Justiça. De 155 decisões desse gênero, entre 1994 e 2005, somente 25 foram efetivamente cumpridas. Mais preocupante ainda é o fato de que dos casos que foram à Justiça, não se tem conhecimento de algum que tenha tido uma decisão final. Uma condenação do Cade à Xerox, de 1991, tramita até hoje.

O fenômeno vem sendo chamado por especialistas de "judicialização da política da defesa da concorrência". O Cade está se transformando num mero guichê, define o procurador-geral da instituição, Arthur Badin. O "locus" da decisão na área de defesa da concorrência se transfere do Cade para o Poder Judiciário. Naturalmente, não se pretende defender limites ao sagrado direito de as empresas questionarem decisões do Cade na Justiça. A Vale do Rio Doce, por exemplo, pode muito bem ter as suas razões no caso em discussão e, se estiver correta, merece a devida reforma do julgamento original.

A alteração das decisões pelo Judiciário exerce um saudável papel saneador, formando e consolidando jurisprudência na área de defesa da concorrência. Ao fim e ao cabo, contribui para o próprio fortalecimento institucional do Cade - que passa a trabalhar com referenciais legais mais sólidos e, progressivamente, verá cada vez menos as suas decisões serem reformadas por recursos ao Judiciário.

O centro da questão não é exatamente, portanto, a "judicialização da política de defesa da concorrência", mas a carga negativa que, no Brasil, envolve o próprio Judiciário, onde processos demoram até décadas para serem concluídos. No caso do Cade, está em jogo a defesa da concorrência, mas poderia muito bem estar tratando da incerteza jurisdicional sobre qualquer contrato, como empréstimos e financiamentos, que se traduzem em custos maiores para a sociedade. Se praticamente todas as empresas condenadas pelo Cade buscam o Judiciário é porque o preço das manobras protelatórias é baixo, e o retorno, elevado. A indústria de liminares produz um custo que não é adequadamente medido. As empresas que tomam decisões de investimento ficam sem conhecer, ao certo, a política de defesa da concorrência. Os consumidores pagam o excesso de lucro a empresas que exercem poder de mercado ou lançam mão de práticas anticompetitivas.

Embora a situação tenha contornos mais dramáticos no Brasil, país em que o Judiciário é lento, o problema vem preocupando órgãos de defesa da concorrência de todo o mundo. O assunto foi tema da mais recente conferência da rede Internacional de Concorrência, realizada em Moscou. Presente ao encontro, a presidente do Cade, Elizabeth Farina, afirmou que é fundamental o Judiciário e o órgão de defesa da concorrência definirem claramente os seus papéis no julgamento de cartéis, fusões e aquisições. No momento atual, em que se discute uma nova lei de concorrência, seria o caso, por exemplo, de estabelecer penalidades para empresas que recorrem ao Judiciário meramente para adiar o cumprimento das decisões. E limitar as fases dos processos sobre defesa da concorrência - eliminando, por exemplo, as primeiras instâncias da Justiça e concentrando o julgamento no STJ - para evitar a indústria de liminares.