Título: "Existe quem tenha o interesse em manter a dependência de soluções paliativas"
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 25/06/2007, Brasil, p. A4

A transposição do São Francisco é a única solução para amenizar as secas do semi-árido nordestino e viabilizar atividades econômicas locais de pequeno porte, defende Francisco Jácome Sarmento, doutor em recursos hídricos e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Para ele, não são adequadas alternativas como a construção de cisternas, a dessalinização de água marinha e a perfuração de poços artesianos. Como um dos principais impactos positivos da transposição, Sarmento vê um aspecto sociológico. "Existem correntes políticas e até instituições seculares, como a própria Igreja, que parecem ter interesse em manter a dependência da população local do uso de soluções paliativas", afirma o professor, que é chefe da assessoria técnica da vice-presidência da República e, no início do governo Lula, atuou na elaboração do projeto de transposição.

Valor: O projeto de transposição do Rio São Francisco é a melhor alternativa para resolver o problema da seca no semi-árido nordestino?

Francisco Jácome Sarmento: No que diz respeito às 390 cidades que vão receber diretamente as águas da transposição, não há solução mais adequada. A água vai chegar a um custo de R$ 0,13 por metro cúbico .Qualquer outra solução teria custos muito mais altos. Em Fortaleza, que é a maior cidade potencialmente receptora dessas águas, qual seria a alternativa? Talvez dessalinizar as águas do oceano. Mas, na maior usina do mundo para esse fim, o custo ainda não ficou abaixo de US$ 0,50 por m³.

Valor: Cisternas não podem ser alternativa mais barata e viável?

Sarmento: Para as populações difusas, afastadas das sedes municipais, pode ser. Essas populações têm pequenas demandas localizadas, para as quais não se justifica a construção de uma adutora. Mas as cisternas não podem ser vistas como uma solução generalizada. No formato padrão, têm capacidade para armazenar 16 mil litros. Isso só é o suficiente para beber e cozinhar. Significa consumir 30 litros por habitante/dia. Uma cidade como Brasília tem consumo per capita de 250 litros de água por dia. Outro problema é que as cisternas só vão ter água quando chover, e 90% da média anual de precipitações no semi-árido nordestino se concentra em seis meses, de janeiro a junho.

Valor: E os poços artesianos?

-------------------------------------------------------------------------------- "Não há solução mais adequada. A água vai chegar a um custo de R$ 0,13 por metro cúbico" --------------------------------------------------------------------------------

Sarmento: A geologia local é de natureza cristalina. Isso gera um problema: as águas se armazenam apenas nas fissuras desse tipo de rocha. Há uma reação química que resulta na salinização das águas. Nem os animais conseguem bebê-la, a não ser que se use um dessalinizador. A quantidade de água armazenada também é baixíssima, da ordem de 2 mil a 3 mil m³ por hora. Ou seja, tanto a qualidade quanto a quantidade estão comprometidas, a não ser em alguns bolsões de água subterrânea, como em Mossoró (RN). Há 40 anos, quando se perfurava um poço por lá, a água jorrava. Com a superexploração, a fonte secou e hoje tem que se buscar a 600, 700 metros de profundidade.

Valor: Muitos críticos da transposição alertam que o Nordeste já tem grande capacidade de armazenamento das águas.

Sarmento: Os opositores argumentam que, só no Ceará, há 17 bilhões de m³ de capacidade de armazenamento nos açudes. Mas não adianta ter uma caixa d'água imensa, na minha casa, se o abastecimento não é renovado. Sem reposição, a reserva vai acabando. No semi-árido, a caixa d'água são os açudes e o abastecimento depende dos humores de São Pedro. De que adianta ter um açude tão grande para enfrentar uma seca de três, quatro, cinco anos? Isso é o que se chama insegurança hídrica.

Valor: As águas da transposição não serão utilizadas para consumo industrial ou do agronegócio, contrariando a exigência de uso humano, feita pelo Comitê da Bacia do São Francisco?

Sarmento: Isso só acontecerá quando a barragem de Sobradinho estiver vertendo. Com os dois canais da transposição bombeando a todo vapor, a 127 m³ por segundo, será retirada apenas 1% da vazão do rio. Essas águas sequer podem ser usadas para gerar energia, pois a Chesf é obrigada a abrir suas comportas, mas podem ser cruciais para viabilizar algumas atividades econômicas. Veja o caso de Campina Grande, cidade de 340 mil habitantes, só na área urbana. Há dez anos, a Justiça Federal embargou o uso das águas de um açude para qualquer fim que não o de abastecimento humano. Quem usa essas águas, o faz clandestinamente. Não estamos falando do agronegócio, mas de atividades de sustentação da frágil economia local. As águas do Eixo Leste vão cair no açude do Boqueirão, que abastece Campina Grande e vizinhança. O problema tende a acabar.

Valor: O sr. diz que a transposição acabará com uso político da água no Nordeste Setentrional. A que se refere exatamente?

Sarmento: Existem correntes políticas e até instituições seculares, como a Igreja, que parecem ter interesse em manter a dependência da população local do uso de soluções paliativas, como as cisternas. Nos períodos em que não chove, só quem repõe a água das cisternas é o carro-pipa. O político local apenas manda o carro-pipa para a região que votou nele. Isso coloca nas mãos de certos homens o poder de decisão sobre a vida de muita gente. Quanto mais paliativa for a solução, mais as classes desfavorecidas vão ficar vulneráveis a correntes inescrupulosas. No momento em que se conecta uma região sem rios perenes ao São Francisco, que concentra 70% da água doce do Nordeste, elimina-se a possibilidade de manipulação da carência. (DR)