Título: Endividadas, Santas Casas expõem caos da saúde pública
Autor: Landim, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 11/07/2007, Especial, p. A18

No fim de junho, Nilza Gomes dos Santos aguardava a avaliação dos médicos para saber se a filha Anabele teria que se submeter a uma cirurgia. A adolescente estava internada na Santa Casa de Macatuba, interior de São Paulo, após peregrinar por cinco meses em seis hospitais. "Não temos convênio, o que seria de nós se não fosse o SUS?", diz Nilza, cujo marido é cortador de cana-de-açúcar.

Com 31 leitos, a Santa Casa é o único hospital de Macatuba, município de 18 mil habitantes. Maria Sueli Andreoli de Oliveira e Sueli Rodrigues da Silva, administradoras, contam que o hospital se equilibrava até 2003, mas, com a terceirização da mão-de-obra em uma usina de açúcar da região, 2,5 mil pacientes deixaram de ter convênio e passaram a ser atendidos pelo Sistema Único de Saúde, o que agravou a situação. Em 2006, o prejuízo chegou a R$ 274 mil.

A mudança de estratégia da usina na contratação de pessoal incluiu Macatuba em uma lista de 1,3 mil hospitais filantrópicos que enfrentam dificuldades, acumulando dívida de R$ 1,8 bilhão com bancos, fornecedores de remédios e equipamentos, além de pendências trabalhistas. Sem condições de funcionar, alguns hospitais beneficentes sofreram intervenção do governo ou auditoria - na última sexta-feira foi a vez da Santa Casa do Rio de Janeiro, que chegou a suspender neurocirurgias e limitar o atendimento na maternidade -, foram vendidos para planos de saúde ou fecharam as portas em uma crise que se arrasta desde o início da década de 90. Estão em melhor situação as Santas Casas que administram plano próprio de saúde. Com os recursos, cobrem o déficit causado pelo SUS.

Em Manaus (AM), a Santa Casa ocupa prédio de 39 mil metros quadrados no centro da cidade, a 150 metros do Teatro Amazonas. Desde dezembro de 2004, o hospital - com 220 leitos e um centro cirúrgico com cinco salas - está lacrado. Fundada em 1880, é a primeira vez que a Santa Casa de Manaus fecha as portas. Segundo Luiz Carlos Perrone Negreiro, secretário de patrimônio, o hospital não renovou um convênio com o governo do Estado, que garantia dois terços da receita. Os 430 funcionários perderam o emprego e a Santa Casa acumula dívida de R$ 16 milhões. "Reiniciamos as conversas com o governo estadual no início de março. Estamos esperançosos em reabrir pelo menos uma parte até o fim do ano", diz Perrone.

A Santa Casa de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, está sob intervenção do governo desde o fim de 2004. "O hospital não teve fôlego para seguir com as próprias pernas", diz Rubens Trombini, presidente da junta administrativa, explicando que as dívidas somavam R$ 54 milhões. O hospital, que já teve 800 leitos, está com 600 e é estratégico para Estado, pois é a única unidade que faz transplantes e outros procedimentos complexos.

A origem do problema dos hospitais filantrópicos é a tabela de remuneração do SUS, que paga, em média, R$ 60 para cada R$ 100 gastos. Por consulta médica com especialista, por exemplo, o SUS repassa R$ 7,5, enquanto o custo é de R$ 21. Nos partos, o sistema paga R$ 356 aos hospitais, que gastam quase o dobro, R$ 600.

A situação é mais crítica nos pequenos municípios, como Macatuba, pois a remuneração do SUS é pior para a baixa e média complexidade. Na alta complexidade, como cirurgias cardíacas, os pagamentos são condizentes com os custos, mas esse tipo de procedimento só é feito nos grandes centros. "Não é preciso ser apenas administrador. Tem que ser mágico para a conta fechar", diz Charles London, presidente da Federação das Santas Casas do Paraná.

A partir de 1999, o SUS abandonou os reajustes lineares e adotou o sistema de pagar por procedimento, observando o grau de utilização e a defasagem dos preços em relação aos custos. Segundo o Ministério da Saúde, a remuneração paga aos hospitais não teve reajustes entre 1994 e 2002, acumulando déficit de 110% em relação a inflação do setor de hospitais.

Desde o início do 2003, alguns procedimentos foram reajustados, com aumentos entre 30% e 873%. Os reajustes somaram R$ 1,39 bilhão no período, mas caíram ao longo dos anos: R$ 671 milhões em 2003, R$ 586 milhões em 2004, R$ 108 milhões em 2005 e apenas R$ 29 milhões em 2006. Segundo Antônio Brito, presidente da Confederação das Santas Casas de Misericórdia do Brasil, o pleito do setor é reajuste linear de 40% da tabela.

José Carvalho Noronha, secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, diz que o governo do presidente Lula tentará corrigir as distorções no segundo mandato, mas manterá o reajuste por procedimento. Ele explica que está em negociação o aumento dos preços e a redução do número de procedimentos, dos atuais 8 mil para 4 mil, com custo de R$ 130 milhões.

O orçamento do SUS está em R$ 18 bilhões. Parece um montante expressivo, mas dividido por 140 milhões de brasileiros (excluindo os 50 milhões que têm plano de saúde) é igual a R$ 128 por pessoa por ano, ou R$ 0,35 por dia. "O milagre é como o SUS consegue funcionar com esses recursos", diz Noronha. Para o ex-ministro da Saúde e atual diretor-geral do Hospital do Coração, Adib Jatene, "é preciso fugir do argumento da área econômica de que o problema não é de recurso, mas de gestão dos hospitais, pois o SUS sabe que os valores pagos não são corretos, mas não pode melhorar, porque não tem orçamento".

O SUS também determina um teto de gastos para cada hospital. Segundo a Confederação das Santas Casas, 10% das internações realizadas em 2006 não foram pagas, apesar de autorizadas pelo sistema, representando prejuízo de R$ 300 milhões. Noronha diz que os tetos estão em revisão, para melhorar a distribuição de recursos entre os 27 Estados. Hoje, por centralizar o atendimento, São Paulo também concentra os recursos.

Existem 2,1 mil hospitais beneficentes no Brasil, onde trabalham 450 mil funcionários e 140 mil médicos autônomos. É a rede mais capilar do país, que atinge o maior número de pessoas. Em 56% dos casos, são os únicos existentes em cidades do interior. Além disso, 40% estão em municípios com menos de 20 mil habitantes. Estes hospitais dedicam 75% do atendimento ao SUS, de onde vem 70% da receita. As Santas Casas realizam 40% das internações do SUS e 38% dos partos e cesarianas. "Somos públicos, porque estamos sempre de portas abertas. Mas não somos governamentais", define Brito.

A história dos hospitais beneficentes no Brasil é antiga. As Santas Casas foram criadas em Portugal pela rainha Leonor Lancastre. No Brasil, o primeiro surgiu em Santos, em 1543. Datam dos séculos XVI e XVII as Santas Casas de Salvador, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, João Pessoa, Belém e São Luís. Esses hospitais eram fundados por pessoas prósperas da comunidade, que formavam uma irmandade. Algumas eram religiosas - católicas ou evangélicas -, outras ligadas a famílias ilustres. Elas sobreviviam de doações em dinheiro, imóveis, e atendiam principalmente indigentes.

A partir da Constituição de 1988 e da criação do SUS, as Santas Casas foram beneficiadas com isenções fiscais. Não pagam nenhum imposto, repassando ao governo apenas a contribuição dos funcionários. Para obter esses benefícios, as Santas Casas são obrigadas a destinar 60% dos atendimentos ao SUS. Este ano, cerca de 200 hospitais filantrópicos estão sendo fiscalizados pelo Ministério da Previdência e correm o risco de perder os benefícios por descumprirem as regras.

Depois que o SUS assumiu o atendimento à saúde da população, as doações para as Santas Casas minguaram, pois empresas e pessoas físicas entendem que elas são responsabilidade do Estado. Como o SUS remunera mal, os hospitais privados lucrativos se afastam do sistema e do atendimento às pessoas carentes, e se voltam mais para as operadoras de saúde.

Em 2004, os hospitais privados representavam 21% das internações do SUS. Esse percentual caiu para 16% em 2006. O setor filantrópico aumentou um pouco sua participação, de 39% para 40% no período, e o maior peso está caindo sobre os hospitais públicos, que ficaram com 43% das internações do SUS em 2006, ante 40% em 2004.

Com um lobby bem organizado no Congresso, os hospitais filantrópicos tentam alterar a situação. O setor tem tradição - o primeiro presidente da Federação das Santas Casas foi José Maria Alckmin, ministro da Fazenda de Juscelino Kubitschek. Além do reajuste da tabela, a principal demanda é regulamentar a emenda 29. Aprovada em 2000, dispõe que os recursos da saúde na área federal sejam acrescidos de 5% do crescimento nominal do PIB, e fixa que 12% do orçamento estadual e 15% do municipal seja destinados à saúde.