Título: Agronegócio é foco de tensão da reforma agrária na AL
Autor: Souza, Marcos de Moura e
Fonte: Valor Econômico, 09/07/2007, Internacional, p. A12

Do sul do Chile ao interior do Espírito Santo, passando pelas terras baixas da Bolívia, a reforma agrária vive um período de mudanças na América Latina. Não se trata mais de mirar só o latifúndio improdutivo, alvo preferencial das campanhas de redistribuição de terra nos anos 60 e 70. A tendência, segundo especialistas, é que foco dos defensores da reforma se volte cada vez mais para a propriedade do agronegócio, produtiva e rentável. Essa visão tem sido fomentada pela retórica anti-capitalista dos governos venezuelano e boliviano.

"O agronegócio está praticamente em todos os países latino-americanos. E o processo de concentração de terra por meio desse setor é mais rápido que a reforma agrária", avalia o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, coordenador do grupo de trabalho Desenvolvimento Rural do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) e consultor da Comissão Pastoral da Terra no Brasil e na Guatemala.

Fernandes, autor de um estudo recente para o Ministério da Agricultura da Argentina sobre concentração de terra, diz que entre os setores do agronegócio que mais se expandem na região estão os da soja (Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai), florestas para a indústria da madeira e papel (Brasil, Argentina e Uruguai), cana-de-açúcar (Brasil e Colômbia) e laranja e banana (Brasil e América Central).

A expansão da indústria agropecuária na região tem um papel destacado na melhora do quadro macroeconômico dos países, trazendo divisas a partir da exportação de commodities, dizem os advogados do agronegócio. Mas os defensores da reforma agrária argumentam que além de a riqueza produzida pelo setor não ficar na zona rural, a quantidade de terras agricultáveis disponíveis para a reforma cai à medida que grandes propriedades se expandem. O argumento que ganha força na região é: governos devem levar em conta não só se uma área é produtiva, mas se cumpre uma "função social", servindo à população do entorno, diz Fernandes. "Se há um município onde, por exemplo, 80% das terras pertencem a uma empresa é preciso dividir essa terra."

"O que se vê hoje não tem nada a ver com a reforma agrária dos anos 60, que era um ataque ao latifúndio improdutivo", diz José Graziano, diretor-regional para América Latina e Caribe da Organização das Nações para a Agricultura e a Alimentação (FAO).

"Hoje há uma tentativa, por parte de comunidades, como por exemplo a dos mapuches, no sul do Chile, de retomada de áreas que são de grandes empresas de plantio de pinheiros pinus." Segundo ele, exemplos semelhantes ocorrem no Peru e no Brasil, em particular no Espírito Santo, onde remanescentes de quilombolas e índios brigam pela posse de parte da área onde hoje está a Aracruz Celulose. "Os grupos que defendem a reforma agrária querem voltar a um estilo de vida mais rural, e não necessariamente tocar negócios agrícolas", diz Graziano.

Mas numa região onde a produção agrícola é um dos pilares das economias nacionais, quem estaria disposto a comprar briga com o agronegócio em nome da redistribuição de terras? Nos últimos anos, Bolívia e Venezuela reviveram o tema com a aprovação de leis de reforma agrária (em 2001 e em 2006, respectivamente). Ambos já passaram por reformas nos anos 50 e 60. Assim como eles, Peru, Chile, Colômbia e outros fizeram reforma na época. Muitos sob pressão dos EUA, que queria evitar mobilizações populares ao estilo do que ocorrera em Cuba.

Na Bolívia, o governo do presidente Evo Morales vem regularizando títulos terras e concedendo títulos de posse, principalmente para para famílias indígenas pobres. Segundo o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), uma das metas é recuperar terras públicas ocupadas por proprietários rurais. Mesmo áreas produtivas que tenham documentação de posse irregular podem ser revertidas para redistribuição. A política assusta fazendeiros, entre eles os cerca de 800 brasileiros do setor agropecuário no país. Para a Confederação Agropecuária Nacional, a disposição do governo pode provocar uma redução de financiamentos a áreas produtivas, diminuição da produção e desabastecimento.

No caso da Venezuela, o novo impulso que o presidente Hugo Chávez dá à reforma agrária passa pela criação de vilas comunitárias e por cooperativas apoiadas pelo governo. Chávez tem como meta acabar com os latifúndios no país até o início da próxima década e aumentar a produção de alimentos. As terras alvo da reforma agrária são as improdutivas, as usadas meramente para a especulação e as sub-aproveitadas. Fazendeiros locais também se dizem preocupados e já acusaram Chávez de apoiar invasores de terra e de promover "terrorismo agrário".

Apesar dos discursos e propostas, nem nesses países houve um avanço real sobre o agronegócio, diz Fernandes, para quem a meta deveria ser não uma luta contra as empresas agropecuárias, mas um esforço para que pequenos e grandes proprietários vivam juntos.

Mas, enquanto o moderno agronegócio aumenta sua importância nas economias latino-americanas, problemas fundiários permanecem, diz Jacques Choncol, ex-ministro da Agricultura do Chile no governo Salvador Allende e professor da Universidade de Arcis, em Santiago. "A América Latina ainda é tem muita concentração de terra e grande quantidade de camponeses pobres. E precisa de reforma agrária."(Com agências internacionais)