Título: Alíquota zero de IPI, jurisprudência do Supremo e insegurança jurídica
Autor: Jacobson Neto, Eduardo
Fonte: Valor Econômico, 04/07/2007, Legislação & Tributos, p. E2

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 25 de junho, por maioria, rejeitar uma questão de ordem levantada pelo ministro Ricardo Lewandowski nos autos dos Recursos Extraordinários nº 353.657, do Paraná, e 370.682, de Santa Catarina, para aplicar efeitos retroativos - "ex tunc" - ao novo entendimento sufragado por aquele tribunal no que tange à impossibilidade de creditamento, pelos contribuintes, do IPI incidente nas operações de aquisição de insumos tributados à alíquota zero e não-tributados, quando utilizados na industrialização de produtos cuja saída é regularmente tributada por este imposto (IPI).

A divergência quanto ao entendimento externado pelo ministro Lewandowski iniciou-se com o voto proferido pelo ministro Marco Aurélio de Mello, que "ponderou que a premissa das empresas era falsa, já que o Supremo não havia proferido decisão final, sem possibilidade de recurso, sobre a matéria". Destacou também Marco Aurélio que reconhecer a modulação dos efeitos do novel entendimento sufragado pelo Supremo consistiria em uma manifesta injustiça: "Contribuintes que ingressaram em juízo conseguirão o implemento do crédito, embora à margem da autorização normativa constitucional, como se essa não estivesse em vigor desde 1998".

O ministro Eros Grau, em seu memorável voto, decidiu que: 1) uma declaração de constitucionalidade não operaria efeitos perniciosos ao ser aplicada retroativamente, motivo pelo qual seria vedado modulá-los - "ex nunc"; 2) não se poderia falar em "mudança de jurisprudência" quando não há decisão transitado em julgado no seio do Supremo, como comprovado por Lewandowski em seu voto; e 3) a retroatividade das norma é vedada apenas em caso de violação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Este entendimento, contudo, não nos parece o mais acertado. Inicialmente porque jurisprudência nada mais é do que a consolidação de reiteradas decisões apontando a exegese acolhida pelo respectivo tribunal acerca de determinada matéria: não se exige, nesse caso, o trânsito em julgado de um acórdão (que não constitui jurisprudência dominante) ou várias destas decisões judiciais. Prova disso é que o Supremo, escorando-se no artigo 557, caput do Código de Processo Civil, vinha julgando monocraticamente - e de forma favorável aos contribuintes - recursos que versavam sobre a matéria em espeque. Argüia-se, para tanto, a existência de jurisprudência dominante neste sentido, conforme os artigos 99, 100, parágrafo 5º do inciso I do 312 e 322 do regimento interno do Supremo. Conseqüentemente, reversão de precedentes - e não de precedente, mesmo que abarcado pela coisa julgada - configura efetiva alteração de jurisprudência.

Quanto à impossibilidade de modulação dos efeitos de acórdão - "ex nunc" - proferido em controle difuso que reconhece a constitucionalidade de norma geral e abstrata, frisamos que tal pleito não induz a uma declaração de constitucionalidade parcial, como proposto no voto proferido pelo ministro Eros Grau. Reconhece-se, nestes casos, a constitucionalidade de norma geral e abstrata desde a sua origem, mas mantém-se, em decorrência dos princípios da segurança jurídica e boa-fé, em razão das reiteradas decisões do Supremo, o direito dos contribuintes aos créditos de IPI relativos aos insumos adquiridos até 5 de março de 2007, data da publicação dos acórdãos proferidos nos Recursos Extraordinários nº 353.657, do Paraná, e 370.682, de Santa Catarina.

De igual forma, cremos não haver justificativa razoável para se aplicar efeitos "ex nunc" à declaração de inconstitucionalidade de normas gerais e abstratas e negá-los a normas individuais e concretas também inconstitucionais. Notadamente quando esta última reflete a interpretação cunhada pelo Supremo, até 5 de março de 2007, ao artigo 153, parágrafo 3º, inciso II da Constituição Federal.

Neste ponto vem a calhar um trecho do voto proferido pelo ministro do Supremo Mauricio Corrêa no Agravo Regimental na Reclamação nº 1.880-6, de São Paulo. Ao tecer comentários sobre a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) e a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), o ministro pontuou que "tanto numa quanto noutra, a decisão do tribunal traduzirá reconhecimento da inconstitucionalidade ou não da lei ou ato normativo. A procedência de uma revela pronunciamento judicial idêntico à improcedência da outra".

Assim sendo, e na linha do voto proferido por Eros Grau, é inconteste que a aplicação de efeitos "ex nunc" à decisão declaratória de inconstitucionalidade importa, de outro lado, no reconhecimento da constitucionalidade parcial da norma, conforme estabelece o Supremo no Habeas Corpus nº 70.514, do Rio Grande do Sul. Ademais, é fato que as súmulas - que nada mais são do que a consagração jurisprudencial de uma dada interpretação normativa -, mesmo não exercendo caráter coercitivo anteriormente à Emenda Constitucional nº 45, de 2004, devem ser entendidas, "consideradas as múltiplas funções que lhe são inerentes - função de estabilidade do sistema, função de segurança jurídica, função de orientação jurisprudencial, função de simplificação da atividade processual e função de previsibilidade decisória -, como resultado paradigmático a ser autonomamente observado, sem caráter impositivo, pelos magistrados e demais tribunais judiciários, nas decisões que venham a proferir", confirme o Supremo no Agravo de Instrumento em Agravo Regimental nº 179.560, do Rio de Janeiro.

Exigir dos contribuintes que tomem posição diferente daquela refletida em firme jurisprudência do Supremo, portanto, é que caracteriza um verdadeiro "non sense". Os efeitos perniciosos de que os contribuintes serão vítimas, de tão evidentes, desmerecem comentários. O argumento relativo à adoção, por nosso ordenamento jurídico, da retroatividade das normas como regra geral - exceções positivadas no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal - não reflete nossa realidade normativa, como provam, dentre outros, os artigos 5º, inciso XL, e 150, inciso III, alínea "a" da Constituição e princípios da segurança jurídica e boa-fé.

Por estes motivos, espera-se que o Supremo reveja sua jurisprudência - como fez no julgamento dos Recursos Extraordinários nº 353.657 e 370.682 -, reconhecendo, na pior das hipóteses, a necessidade de modular-se os efeitos destes julgados nos moldes em que proposto pelo ministro Ricardo Lewandowski em seu voto.

Eduardo Jacobson Neto é advogado, especialista em direito tributário pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e sócio do escritório De Nardo e Jacobson Advogados Associados

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