Título: A economia política do possível
Autor: Santiso, Javier
Fonte: Valor Econômico, 05/07/2007, Opinião, p. A13

Está ocorrendo algo inédito na América Latina. Tradicionalmente, as altas de preços das commodities, como a que estamos experimentando atualmente, foram sinônimos de políticas fiscais expansivas, ondas inflacionárias e muitos outros males que, neste momento, parecem não ter se manifestado. Em toda a região, a inflação permanece sob controle, apesar do impulso de consumo e do crescimento generalizado. O mais surpreendente, porém, é que as políticas fiscais mantiveram-se sóbrias, e isso apesar de um denso ciclo político como o vivido em 2006.

Essa situação não é, obviamente, homogênea, e existem casos espetaculares de regressão ao passado. A Venezuela é, sem dúvida, o melhor exemplo de que, na região, a história pode sofrer tropeços. Fortemente dependente de suas exportações de matérias-primas, continua mantendo a velha tradição de anos atrás, acumulando pressões inflacionárias, grandes gastos públicos e desperdício de ouro negro nesta nova época de abundância. Dependendo fortemente das exportações de petróleo (90% do total das exportações), a economia venezuelana viu, assim, disparar seus gastos públicos (para 48%, em janeiro de 2007, em comparação com um ano antes). Em 2006, a inflação continuou sendo uma das mais elevadas na região (17%).

Na realidade, o que chama a atenção não é esse retrocesso histórico, mas sim algo mais profundo que está acontecendo em muitos outros países: o surgimento de uma economia política singular. Já o havíamos ressaltado num livro publicado em 2006 (Latin America´s Political Economy of the Possible, Cambridge, Mass., MIT Press), qualificando essa transformação silenciosa de surgimento de uma economia política do possível, feita de continuismo e pragmatismo, uma economia política combinando ortodoxia fiscal e monetária, com fortes doses de políticas sociais. Naquela ocasião havíamos mencionado extensamente a "niña bonita" da região, o Chile, como emblemática de "possibilismo". A esse exemplo havíamos acrescentado o México e o Brasil, mas também a Colômbia e o Uruguai, assinalando que a economia política do possível não tinha cor política.

De lá para cá, os fatos mostraram que o possibilismo manteve-se em todos os países mencionados. Na verdade parece que, inclusive, somaram-se a esse grupo de países alguns outros. O caso mais notável é, sem dúvida, o Peru.

Esse país está vivendo uma grande mudança. Assim como a Venezuela, trata-se de uma das economias mais dependentes de matérias-primas: 75% das exportações peruanas são constituídas de metais, ouro ou produtos agrícolas não beneficiados. Em 2006, o país esteve prestes a optar por uma ruptura radical e voltar-se para uma economia do impossível, no estilo da "revolución bolivariana", em marcha em sua vizinha andina. Quando Alan García candidatou-se, afinal, para a presidência, ressurgiram os fantasmas do passado.

-------------------------------------------------------------------------------- O que desperta a atenção é que o Peru tenha adotado a economia política do possível, consciente de que não existem atalhos mágicos para o desenvolvimento --------------------------------------------------------------------------------

Apesar disso, o novo presidente surpreendeu imediatamente, cumprindo rigorosamente a promessa de manter o rumo de uma economia política do possível. E para comprová-lo nomeou para o Ministério da Economia e Habitação, assim que assumiu o poder, um economista de prestígio internacional, reconhecido não apenas por seu rigor e alta qualificação técnica, como também por seu pragmatismo: com Luis Carranza, Alan García serviu-se de um trunfo magistral, um economista procedente do setor privado (era economista-chefe para a América Latina e Mercados Emergentes no BBVA) com ampla experiência em gestão macroeconômica, mas sobretudo um economista pragmático em sua maneira de abordar os fatos - um possibilista.

Em 2006, a economia peruana alcançou taxas de crescimento asiáticas (7,8% de crescimento do PIB), um marco que deverá voltar a repetir-se em 2007 e permitirá, caso esses níveis se mantenham, obter uma redução de 50% a 40% nos níveis de pobreza ao encerramento do mandato do atual governo. O sol continuou brilhando e, apesar do forte salto de crescimento, a inflação apenas oscilou. A conta corrente registrou um excedente recorde (2,2% do PIB em 2006), ao passo que as reservas superavam os US$ 20 bilhões. E, além disso, a dívida externa continuava diminuindo a grande velocidade, chegando a menos de 30% do PIB no fim de 2006 (contra 50% do PIB no período 2000-2004). Em meados de 2007, o país, por meio de seu ministro da Economia e Habitação, alcançou mais um êxito: renegociou, em termos muito favoráveis, sua dívida com o Clube de Paris, e subiu, assim, mais um degrau em sua marcha rumo ao grau de investimento.

Tudo isso coloca o Peru, efetivamente, mais que nunca, no caminho do precioso grau de investimento buscado por todas as economias emergentes. E mais: não seria surpreendente - e, desde logo, sim, muito merecido - que o Peru obtivesse essa qualificação creditícia máxima em curtíssimo prazo, como uma maneira de reconhecer o espetacular êxito que está alcançando a economia andina. De fato, o risco país se posicionou novamente em mínimos históricos em junho de 2007 (95 pontos base acima dos bônus do Tesouro dos EUA). Evidentemente, a excepcional prosperidade que está impulsionando todas as economias baseadas em commodities explica muitos dos sucessos. Mas, como demonstra o exemplo da vizinha Venezuela, não basta poder aproveitar a onda das matérias-primas. É também proveitosa a boa gestão do ambiente macroeconômico, para não deixar-se alterar pelas vagas que sempre acompanham esse tipo de boom.

O caso peruano demonstra, mais uma vez, em que medida permeia toda a região essa economia política do possível. Ele soma-se aos casos do Chile, Brasil e México que havíamos descrito no referido livro. Em caso de voltar a editá-lo, seria, sem dúvida, necessário escrever um capítulo peruano. Sem dúvida, "la niña bonita de la región" continua sendo o Chile, como demonstra o novo marco alcançado por esse país, em meados de 2007, ao receber sinal verde da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para converter-se, depois do México, no segundo país latino-americano a ingressar no organismo. Na verdade, apesar de "niña bonita chilena" continuar surpreendendo-nos a todos, as travessuras da "niña buena peruana" não de deixam também de chamar a atenção.

O que mais desperta a atenção é, sem dúvida, que, como o Chile, o Peru tenha adotado essa economia política do possível, consciente de que não existem atalhos, nem modelos ou paradigmas, manuais de economia, que abram a caixa mágica do desenvolvimento; consciente de que o paraíso não está ao dobrar a esquina, de que as utopias sociais, econômicas e políticas sempre terminam em becos sem saída.

Javier Santiso é economista chefe e diretor-adjunto do Centro de desenvolvimento da OCDE.