Título: Brasília abre guerra contra construções em condomínio fora da lei
Autor: Izaguirre, Mônica e Costa, Raymundo
Fonte: Valor Econômico, 03/07/2007, Especial, p. A16

Quase todas as madrugadas, Juliano, morador de um condomínio horizontal irregular de Brasília, é acordado por sons que vêm do terreno vizinho. É o barulho de uma betoneira. Por trás do muro alto, uma nova casa está sendo erguida. É assim, às escondidas, que muitas pessoas passaram a construir depois que tomou posse, em 2007, o único governador eleito pelo antigo PFL, hoje Democratas (DEM), José Roberto Arruda. Ele é o primeiro governante a reprimir a proliferação das ocupações irregulares do solo no Distrito Federal.

Inaugurada em 1960 pelo presidente Juscelino Kubitschek, Brasília deveria ser exemplo de respeito às normas de ocupação da terra. Afinal, nasceu planejada, fruto da decisão do governo da República de implementar a transferência da capital federal, antes o Rio de Janeiro, prevista desde a Constituição de 1891. "Brasília é uma terra fora da lei", reconhece o governador Arruda. "O esforço do meu governo é para trazer o DF de volta à legalidade", diz. Uma volta à legalidade que está sendo traumática para quem comprou terrenos, para a geração de empregos e para o comércio de materiais de construção no DF.

O problema tem origem no decreto de desapropriação dos 5,8 mil km² que formam o quadrilátero do DF, que tornou públicas parte das terras, e outras não. Com o passar do tempo foi desenvolvida uma indústria de grilagem. Há até um ex-governador, Joaquim Roriz, respondendo por essa acusação feita na Justiça pelo deputado Rodrigo Rollemberg (PSB-DF). Surgiram os condomínios, uma espécie de invasão de classe média, que hoje abrigam uma população estimada em cerca de 500 mil pessoas.

Um celeiro eleitoral que o governador Arruda, à época senador, tentou atrair com a aprovação de lei no Congresso, permitindo a venda dos terrenos. Lei essa recentemente declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na qual o governador ampara sua decisão: quem já tem imóvel construído poderá regularizar a situação por meio de venda direta, pagas em 36 prestações. Com as vendas, Arruda espera arrecadar cerca de R$ 1 bilhão, a maior parte ainda durante seu mandato. Quem tem a terra nua, não pode mais construir e terá que participar de licitação para a aquisição do lote, sem direito de preferência.

"A fiscalização está pegando pesado. Nunca se viu tanto embargo de obra ", constata a presidente da União dos Condomínios Horizontais do DF (Unica), Junia Bittencourt. Mas Junia é a primeira a reconhecer a necessidade de se frear loteamentos não-licenciados.

Dados da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do DF dão a magnitude do problema enfrentado pelo governador. Cerca de 100 mil famílias, um quarto da população do Distrito Federal, residem em loteamentos irregulares, quase todos cercados e de acesso controlado, motivo pelo qual se autodenominam condomínios. Em toda a área do distrito, que inclui Brasília e cidades satélites, existem 513 desses parcelamentos. Parte é ocupada por pessoas de baixa renda, mas o padrão dos imóveis revela que também há muitos de classe média e média alta. Em praticamente todas as carreiras bem pagas do serviço público, inclusive entre juízes e procuradores, se encontra alguém que mora, morou, tem ou já teve lote em condomínio irregular.

A administração está determinada a coibir novas edificações enquanto os parcelamentos não forem regularizados. Quatro loteamentos estão em fase adiantada de regularização, mas nem neles o governo tem tolerado novas construções. Além de embargar toda obra que consegue detectar, a fiscalização impede a entrada de caminhões de materiais de construção nos condomínios, contam lojistas do segmento. "Que eu me lembre, isso nunca ocorreu antes de o Arruda virar governador", diz Cássio Pádua, dono, há duas décadas, de loja no setor Jardim Botânico, uma das áreas que concentram condomínios irregulares de classe média.

Somado aos embargos, o medo de que sejam apreendidos já provoca pedidos da clientela para devolver materiais comprados e estornar pagamentos, reclama Pádua. O mesmo acontece na loja gerenciada por Adriano Delevedove, a poucos metros dali. "Só nos últimos dois meses, tivemos no mínimo 15 pedidos para recolhimento de material já comprado e entregue", relata o gerente.

Na contramão da tendência vista no resto do país, onde crescem alavancadas por incentivos fiscais do governo federal, as vendas a varejo de material de construção no DF caem desde janeiro, cada vez mais, em relação a iguais meses de 2006, afirma Geraldo Corrêa. Ele preside a Acomac, associação que representa cerca de 2,7 mil varejistas do segmento no DF, e tem loja em Vicente Pires, outra área de condomínios não-licenciados.

A Acomac não dispõe ainda de dados consolidados, mas com base na gritaria geral dos filiados, Corrêa assegura que, na média, comparativamente a igual mês de 2006, houve queda de pelo menos 20% nas vendas em maio. "A situação é assustadora", diz ele, temendo piora em junho. Lojas com pouco movimento e balconistas sem ter o que fazer, numa época sazonalmente favorável à construção por causa da estação seca, corroboram o temor.

A construção civil não está totalmente parada no DF, mas em áreas de ocupação regular predominam prédios, cujas construtoras compram direto da indústria. É para essas construtoras que os críticos da decisão do governo acreditam que será desviada boa parte da demanda por imóveis, brecada com a suspensão das construções nos terrenos. Entre elas, líderes do ranking do setor, como a Paulo Octávio, que leva o nome do vice-governador do DF.

O que sustenta o varejo é a construção de casas. Fora dos condomínios irregulares, esse tipo de obra é residual. Por isso, os lojistas são tão afetados, explica André Luis Vasconcelos, presidente da Associação Comercial do Jardim Botânico, cujo negócio também é venda de material de construção. Ele calcula que os ocupantes de parcelamentos não-licenciados respondem por até 80% da demanda por esses produtos no varejo, estimativa referendada pela Acomac.

Vasconcelos destaca que os trabalhadores começam a sofrer com demissões. Ele e Pádua já foram obrigados a reduzir o quadro. Quem vive de emprego informal na construção também está sendo muito afetado com a parada de pequenas obras, alerta. Os lojistas dizem que não podem tirar a razão do governador. Mas avaliam que a transição está traumática demais.