Título: A Ásia melhorou ou está repetindo erros?
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Fonte: Valor Econômico, 02/07/2007, Internacional, p. A10

É um aniversário nada feliz: 2 de julho de 1997, o início oficial da catastrófica crise financeira asiática. Naquele dia, a Tailândia ficou sem reservas internacionais na tentativa de defender sua moeda de um enorme ataque especulativo. Foi forçada a deixar o baht flutuar, e este prontamente despencou. A situação rapidamente se espalhou à medida que os investidores tiravam seu dinheiro dos países com sintomas econômicos parecidos - especialmente Indonésia, Malásia e Coréia do Sul.

Hong Kong, Filipinas, Cingapura e Taiwan também foram atingidos pela tempestade. Nunca antes o mundo havia visto uma fuga de capital em tal escala e velocidade, levando ao colapso mercados financeiros e economias. Após dez anos, muitos acreditam que essas economias estão totalmente recuperadas. Mas outros pensam que o Leste Asiático pode estar a caminho de outro choque financeiro.

A crise de 1997 foi diferente de problemas anteriores. Ao contrário da América Latina, onde a maior parte das crises nos mercados emergentes havia ocorrido, o Leste da Asiático tinha inflação baixa, orçamentos equilibrados e uma série admirável de crescimento de quase 8% em média por três décadas. Isso tornou o choque ainda mais inesperado e dramático.

Olhando em retrospecto, porém, é fácil ver o que estava errado na Ásia: uma combinação de sistemas financeiros fracos, uma apressada abertura das economias ao capital estrangeiro e uma política de atrelar as moedas locais ao dólar. A expectativa de que as moedas continuariam fixas encorajou bancos e outras instituições locais a tomar pesados empréstimos em dólar, a taxas de juros mais baixas do que em casa. Com o capital entrando, esses empréstimos aumentaram, assim como os valores dos imóveis e os preços das ações.

Quando o dólar ganhou força entre 1995 e 97, o mesmo ocorreu com as moedas do Leste da Ásia, levando a um aumento dos déficits em conta corrente. Em 96, o déficit da Tailândia foi a 8% do PIB. Assim que investidores perceberam que isso era insustentável, começou a fuga de capital e as reservas internacionais do país minguaram.

Uma vez que a Tailândia e outros países desvalorizaram suas moedas, a crise deixou de ser apenas cambial. A desvalorização inchou as dívidas em moeda estrangeira, em termos locais, resultando em falências generalizadas.

A rúpia da Indonésia havia desvalorizado 86% em relação ao dólar. As moedas da Tailândia, Coréia do Sul, Malásia e Filipinas haviam caído entre 40% e 60%; os mercados de ações sofreram quedas de pelo menos 75% em dólar.

Em 1998, Indonésia, Malásia, Coréia do Sul e Tailândia viram seu PIB real per capita encolher uma média de 11%. Muitos milhões de pessoas perderam seus empregos. Tailândia e Indonésia, os dois países mais duramente atingidos, sofreram no período de 1997 a 2002 uma queda de 35% do PIB em relação às suas produções em potencial (assumindo o crescimento na taxa anterior), algo tão ruim quanto a queda da produção industrial dos EUA durante a Grande Depressão do começo dos anos 30.

Os pessimistas previram uma década de crescimento perdido. Um crítico notório do milagre asiático foi Paul Krugman, que dizia antes da crise que o crescimento da Ásia era resultado mais de "transpiração do que de inspiração", baseado mais na entrada crescente de capital e mão-de-obra que em ganhos de produtividade, e que isso era insustentável.

Mas o colapso veio dos excessos financeiros, e não do fraco crescimento da produtividade. Na verdade, a maioria das estimativas sugere que o crescimento da produtividade no Leste da Ásia vinha sendo muito maior do que em outras economias emergentes ou desenvolvidas. É verdade que o crescimento acelerado ocultava investimentos duvidosos, regulamentação bancária inadequada e corrup-ção, mas os principais ingredientes do crescimento - uma taxa de poupança elevada para financiar os investimentos e mercados abertos - estavam estabelecidos.

Esse é um dos motivos de a maioria das economias da região ter se recuperado mais rápido do que muitos esperavam. Os pacotes de ajuda do FMI também ajudaram a restabelecer a confiança, complementados por reformas estruturais e fortalecimento bancário. Em 2000, a renda per capita retornou aos níveis pré-crise na Coréia do Sul e na Malásia; na Tailândia e na Indonésia isso se deu em 2003 e 2004, respectivamente.

Dez anos depois, os mercados financeiros da Ásia estão novamente em ebulição, e a região é mais uma vez invejada no mundo inteiro. A Ásia emergente cresceu a uma taxa anual média de 8% nos últimos três anos - a mesma rapidez de antes da crise. Assim, pode-se imaginar que já houve uma recuperação plena. Alguns comentaristas econômicos acreditam que, graças a todas as reformas estruturais, as vítimas da crise são hoje mais dinâmicas e mais resistentes do que nunca. Outros, porém, temem que outra crise esteja se desenhando. Quem está certo?

Os otimistas são culpados de serem otimistas demais. O crescimento médio de 8% da região inclui China e Índia, países que estão crescendo mais e também possuem economias muito maiores do que tinham dez anos atrás. O Banco de Desenvolvimento da Ásia (BDA) estima que nas cinco economias do Leste Asiático mais duramente afetadas em 1997-98, a tendência de crescimento anual a partir 2000 teve uma redução de até 2,5 pontos percentuais, em comparação a 1990-96, para uma média de pouco mais de 5%.

O principal motivo disso é que os investimentos não se recuperaram. O gasto de capital respondeu por uma média de apenas 24% do PIB nessas economias no ano passado, em relação a 35% em 1995. Isso se compara a uma taxa de investimentos de mais de 40% na China; e apenas é um pouco maior que a de muitos países ricos, onde as oportunidades de investimentos deveriam ser bem menores. Antes da crise, os investimentos provavelmente estavam altos demais; agora, estão baixos demais.

A infra-estrutura pública, especialmente na Tailândia e na Indonésia, é pior hoje que há dez anos, e os investimentos das empresas estão sendo afetados pelas incertezas econômicas e políticas. Como já sofreram muito, as empresas estão cautelosas em contrair dívidas. O BDA diz que os governos podem fazer muita coisa para mudar isso: de investir mais em educação e infra-estrutura a combater a corrupção e melhorar o ambiente regulatório. Apesar da retórica de grandes mudanças, a verdade é que a reforma tem sido relativamente limitada fora do setor financeiro.

Vários estudos sugerem que a qualidade da governança é importante para os investimentos e o crescimento. E, infelizmente, alguns aspectos da governança no Leste Asiático pioraram. O BDA usa informações compiladas pelo Banco Mundial para classificar Indonésia, Malásia, Filipinas, Coréia do Sul e Tailândia em relação ao resto do mundo, em seis medidas de governança: responsabilidade na prestação de contas, estabilidade política, eficiência do governo, qualidade regulatória, obediência às leis e controle da corrupção. Comparando 2005 com 1996, o placar piorou para o Leste Asiático em 22 das 30 comparações (isto é, as seis medidas para cinco países). Se as classificações internacionais são comparadas, esses países caem em 28 de 30 comparações. Somente a Coréia do Sul marcou pontos na melhoria da governança em mais de metade das medidas.

Até mesmo no setor financeiro é preciso fazer mais. Os bancos estão mais resistentes graças à melhora dos controles internos e dos padrões de supervisão. As relações de capital aumentaram, e os empréstimos vencidos e não pagos caíram bastante: na Tailândia, de 43%, em 1998, para 8% no ano passado. Entretanto, a condição mais saudável dos balanços dos bancos se deve em parte a condições macroeconômicas favoráveis, segundo Philip Turner, do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) . O crescimento acelerado e taxas de juros singularmente baixas estão alavancando os lucros dos bancos. E, mesmo assim, o gerenciamento de riscos continua ruim em alguns países. Os mercados de capitais, uma fonte alternativa dos fundos, não estão desenvolvidos o suficiente.

No âmbito externo, porém, os otimistas estão certos em dizer que a Ásia está mais forte e resistente. A região está hoje bem menos vulnerável a uma crise no balanço de pagamentos que há dez anos, quando todos os países atingidos pela crise tinham grandes déficits em conta corrente. Agora, todos possuem superávits em conta corrente e dívidas externas muito menores. Eles também possuem grandes reservas para se protegerem de qualquer ataque especulativo.

Isso significa que uma repetição de 1997 é improvável. Mas alguns economistas, como Nouriel Roubini, da Roubini Global Economics, afirmam que a formação de reservas em si está criando novos riscos. Ele diz que os formuladores de política do Leste Asiático não aprenderam a lição mais importante da crise. As taxas de câmbio estão mais uma vez atreladas ao dólar. Isso, diz ele, ameaça criar uma nova, mas diferente, crise financeira: não um choque no balanço de pagamentos, como da última vez, mas inchaços e estouros nos mercados de ativos.

Com os governos tentando manter suas moedas baratas, as reservas totais da Ásia em desenvolvimento saltaram de US$ 250 bilhões, em 1997, para US$ 2,5 trilhões este ano. O desejo de acumular reservas é compreensível, mas agora está se mostrando excessivo. Roubini diz que a política das economias asiáticas de acompanhar o dólar, e o conseqüente aumento acelerado das reservas, está levando a um crescimento excessivo do dinheiro em circulação e do crédito, das pressões inflacionárias e de bolhas nos mercados acionário e imobiliário. Isso, conclui ele, em algum momento levará a vulnerabilidades parecidas com as entradas maciças de capital, boom do crédito, superaquecimento e bolhas que precederam a crise de 1997.

Sua previsão pessimista é baseada na "trindade impossível": uma economia não pode controlar a liquidez doméstica e administrar seu câmbio se sua conta de capital estiver aberta. Se ela mantém sua moeda desvalorizada, a entrada de divisas estrangeiras vai reforçar o crescimento do dinheiro em circulação. O banco central pode tentar "esterilizar" o impacto das maiores reservas vendendo títulos para enxugar o excesso de liquidez. O problema é que a venda de bônus tende a puxar as taxas de juros para cima, atraindo assim mais capital de fora. Roubini crê que o espaço para esterilização pelos bancos centrais da Ásia é muito limitado, e desse modo a alta das reservas significa excesso de liquidez ainda maior.

No entanto, essas economias poderão sustentar as políticas do momento por um período maior que o esperado por Roubini. Isso porque muitas das características econômicas descritas por ele - como o câmbio fixo, enormes superávits em conta corrente e bolhas nos preços dos ativos - certamente se aplicam à China, mas não às economias menores do Leste Asiático. Para começar, as principais vítimas da crise permitiram a valorização de suas moedas frente o dólar numa proporção muito maior que a adotada pela China.

Em segundo lugar, a alegação comum de que esses países têm grandes superávits em conta corrente, que provam que suas moedas estão desvalorizadas, é exagerada. A China possui um grande superávit, mas entre os ex-"países da crise", somente a Malásia possui um grande superávit (11% do PIB). Coréia do Sul, Tailândia e Indonésia possuem em média um superávit de menos de 1% do PIB. Na verdade, o Morgan Stanley avalia que essas moedas estão agora valorizadas demais ante o dólar.

Em terceiro lugar, na maioria dos países o acúmulo de reservas internacionais não aumentou exageradamente o volume de dinheiro em circulação e a inflação.

O capital estrangeiro não está provocando uma explosão da oferta de dinheiro e do crédito em parte porque a esterilização dos bancos centrais está sendo relativamente bem sucedida no controle da liquidez. Uma diferença importante entre hoje e os anos que desembocaram na crise é que a pressão de alta sobre as moedas e o aumento das reservas internacionais refletem quase que totalmente os superávits em conta corrente e os investimentos estrangeiros diretos, e não as entradas líquidas de dinheiro especulativo. Segundo David Carbon, do DBS, um banco de Cingapura, as entradas líquidas de capital nas economias da crise estão em média em apenas 0,5% do PIB desde 2004, comparado a 6,5% no período 1991-96.

Somente a Tailândia vem registrando uma grande entrada líquida de capital e, no ano passado, teve problemas. A inflação começou a subir, levando o banco central a elevar os juros. Isso atraiu ainda mais capital e forçou uma alta do câmbio. Em dezembro, para conter a valorização do baht e reconquistar o controle da liquidez, o governo fez uma tentativa malfadada impor um imposto sobre os investimentos estrangeiros. O mercado de ações despencou. Na maior parte das outras pequenas economias asiáticas, porém, os bancos centrais não estão sendo inundados por entradas liquidas de capital de curto prazo. Pode ser por isso que os países estão conseguindo esterilizar grandes volumes de reservas internacionais sem atraírem ainda mais capital.

Desse modo, nenhum dos dois pontos de vista mais comuns sobre as vítimas da crise financeira na Ásia parece verdade. As economias mais duramente atingidas pela crise ainda não se recuperaram totalmente: seu crescimento continua inferior ao de antes de 1997. Mas também não estão com excesso de liquidez e não caminham para uma outra crise financeira.

Uma grande mudança em relação à última década é a emergência da China como potência econômica. Outras economias asiáticas perderam parte de suas exportações para a China, que, por sua vez, importa grandes volumes de equipamentos e componentes da região. A demanda da China por matérias-primas também provocou uma alta nos preços das commodities, beneficiando alguns produtores do Sudeste Asiático. A China agora absorve 22% das exportações do resto da Ásia emergente, número que era de 13% no fim dos anos 90.

Os países menores do Leste Asiático estão registrando um pequeno declínio em sua participação no comércio mundial, na medida em que aumenta a participação da China, mas as exportações desses países continuam crescendo em ritmo acelerado. No fim dos anos 90, os investimentos estrangeiros diretos no Sudeste Asiático caíram, provocando temor de que a China estaria roubando investimentos. No entanto, os investimentos cresceram muito nos últimos anos. No geral, é quase certo que a China vem ajudando o resto da Ásia.

Não obstante, o temor da perda de competitividade em relação à China vem tendo um grande peso na relutância desses países em permitir uma valorização mais rápida de suas moedas. Se a China permitisse uma valorização de sua moeda, o yuan, esses países teriam uma menor necessidade de intervir.

Poderá a China ser a fonte da próxima crise? A China foi menos afetada em 1997-98 graças ao rígido controle de capital. De fato, ao não desvalorizar sua moeda, ela ajudou a impedir um agravamento do contágio financeiro. Mas a China, mais que seus vizinhos, pode ter aprendido a lição errada: especificamente, a necessidade de manter sua taxa de câmbio estável e acumular reservas enormes. A política monetária da China tem sido frouxa demais, e os juros baixos pagos sobre os depósitos bancários estão encorajando uma grande transferência de dinheiro para o seu mercado de ações. Desse modo, o diagnóstico de Roubini para a Ásia se aplica à China.

Se a bolha dos preços das ações estourar, as conseqüências econômicas na China - e entre seus vizinhos - provavelmente serão suaves, uma vez que a posse de ações pelos chineses é relativamente baixa. Investidores nervosos poderão tirar dinheiro de outros mercados de ações asiáticos, mas as grandes reservas internacionais deverão impedir uma grave fuga de capital.

Em vez de se protegerem com grandes reservas, os governos do Leste Asiático deveriam tornar suas economias mais flexíveis e seus bancos mais resistentes. Assim, estariam mais bem equipados para lidar com a volatilidade futura. Eles precisam de taxas de câmbio mais flexíveis, o que não só impediria mais acúmulo de reservas, como também ajudaria a transferir a fonte do crescimento das exportações para a demanda doméstica. Os governos precisam também restaurar a confiança das empresas e criar ambientes de investimento mais saudáveis. A Ásia está se saindo melhor do que a maioria das pessoas previa dez anos atrás. Mas ela poderia estar se saindo ainda melhor.