Título: Receitas equivocadas cobram agora seu preço na Argentina
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Fonte: Valor Econômico, 28/06/2007, Opinião, p. A12

As eleições para prefeito de Buenos Aires e governador da Terra do Fogo mostraram um arrefecimento da força política do presidente Néstor Kirchner. Ela está sendo lentamente corroída pelo avanço da inflação e pelos efeitos de uma política energética equivocada, que começa a cobrar seu preço. Seu predomínio nas urnas em outubro ainda está fora de questão, mas o resultado do pleito no domingo passado indica que as chances de que a senadora Cristina Kirchner, sua mulher, possa ser a candidata à presidência minguaram bastante, se é que esse tango familiar de poder seja, de fato, mais do que uma pura encenação.

A vitória de Mauricio Macri, do Compromisso para a Mudança, com 61% dos votos - o candidato da situação, Daniel Filmus, ministro da Educação de Kirchner, obteve 39% - aponta que o presidente da República enfrenta resistências regionais fortes, embora elas ainda estejam longe de configurar uma alternativa de poder. A capital argentina costuma votar contra o governo e até a crise de 2001 era um reduto importante da União Cívica Radical, o principal rival do peronismo. Com a derrubada de Fernando de la Rúa do poder por manifestações populares, novas forças políticas surgiram. Macri representa uma delas e a consagração que recebeu das urnas é tão mais importante porque a UCR, alvo de uma forte ofensiva de Kirchner, não deu seu aval à oposição, em um apoio camuflado a Filmus.

O governo deu-se por satisfeito com os 40% dos votos, superior aos 20% de seus candidatos nas eleições parlamentares de 2005, mas é evidente que o rolo compressor de Kirchner tem menos efeito hoje. As dificuldades do presidente, porém, não se transformam automaticamente em vantagens para a oposição. Macri hesita em assumir a liderança oposicionista na corrida presidencial e é quase certo que não o fará, especialmente porque suas forças fora de Buenos Aires são exíguas. Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia de Kirchner, não conseguiu o apoio integral da UCR para ter alguma chance de vencer as próximas eleições. A UCR se dividiu, com uma ala favorável ao presidente, e as várias lideranças dissidentes da oposição não falaram até agora a mesma língua.

As urnas, entretanto, deram um sinal de alerta a Kirchner. Seu estilo ríspido e populista começa a se chocar com a realidade que ajudou a moldar. Há uma séria crise de energia se desenrolando e ela é produto da proibição de reajuste de preços, que sepultou investimentos necessários na infra-estrutura. Os cortes de energia se sucedem e penalizam a indústria que, no interior do país, já começou a reduzir os turnos de produção. Sem investimentos, a crise tinha data e hora marcada. O crescimento da economia acima de 8% nos últimos quatro anos colocou o abastecimento sob intensa pressão. Só neste ano a demanda energética avançou mais de 20% e foi intensificada por uma onda de frio mais forte que o previsto. A marcha acelerada da economia terá de perder o fôlego, enquanto Kirchner busca manter seu prestígio acusando as companhias de gás pela escassez.

Corrói também o apoio político ao presidente a alta persistente da inflação, especialmente a dos alimentos. O governo não teve a menor sutileza em modificar o índice de preços de forma que ele seguisse suas conveniências - obter uma inflação abaixo de dois dígitos em 2007, a exemplo do ano passado, quando ela encostou nos 10%. Para os analistas privados, a inflação hoje anda na casa dos 15% anuais. A receita oficial para contê-la foi o acordo forçado de preços ao qual se submeteram vários setores da economia, especialmente os supermercados. O resultado foi escassez em alguns setores, como o de laticínios, e a falta de oferta em outros. Com preços controlados, houve estímulo ao consumo de combustíveis, cuja oferta se aproxima do limite e terão de ser reajustados com uma inflação em ascensão. Os benefícios temporários do arrocho nos preços estão perto de expirar.

Não há dúvidas de que Kirchner, que teve a valentia política e a competência de assumir a presidência depois que cinco outros políticos fracassaram em questão de meses, ganhará as próximas eleições. Sua mulher, Cristina, não liquidaria a fatura no primeiro turno, segundo as pesquisas, e daria chances ao azar. Kirchner caminha para o segundo mandato, com a vantagem, sempre relativa, de que nem de longe enfrentará uma situação pior do que a que encarou quando iniciou o primeiro.