Título: G-4 se desentende e põe Rodada Doha no caminho do fracasso
Autor: Moreira, Assis
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2007, Brasil, p. A3

A Rodada Doha chegou de vez à beira do abismo ontem, com o fiasco de negociação crucial entre os ministros do Brasil, Estados Unidos, União Européia e Índia (o G-4), em meio a recriminações Sul-Norte, envolvendo interesses de países em desenvolvimento e desenvolvidos. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, acusou os EUA e a UE de terem feito um acordo entre eles para reduzir a ambição na área agrícola, ao mesmo tempo em que exigiram corte de tarifas de importação de produtos industriais que traria "desinvestimento e desindustrialização nos países em desenvolvimento".

Para Kamal Nath, ministro indiano de Comércio, os países ricos mostraram inflexibilidade e arrogância. "Não é só uma questão de números. É uma questão de atitude. Os EUA não entenderam que o mundo mudou." Amorim notou que acabou o tempo em que os países em desenvolvimento baixavam a cabeça e aceitavam o que os industrializados queriam.

Por sua vez, os EUA e a UE criticaram duramente o Brasil e a Índia, como pouco se viu em seis anos de negociação global, dizendo que os dois gigantes em desenvolvimento ofereceram "nada" e recuaram na negociação industrial. Peter Mandelson, comissário europeu de Comércio, disse que a demanda dos EUA e da UE era "razoável", porque o coeficiente proposto na fórmula só resultaria em redução média de 1,3% nas tarifas aplicadas no Brasil e na Índia.

A representante comercial americana, Susan Schwab, acrescentou que parecia que o Brasil e a Índia não estavam na sala de negociação, ou quando estavam queriam mudar "a trave do gol" todo o tempo. "Não podemos negociar conosco mesmo", insistiram Mandelson e Schwab. Amorim retrucou que mesmo com o coeficiente 30 para corte de tarifa industrial dos países em desenvolvimento isso geraria mais comércio do que o coeficiente 10 para países industrializados.

O colapso torna quase impossível que um esboço de acordo na Organização Mundial de Comércio (OMC) seja concluído nos próximos meses, um passo necessário para completar 35 mil páginas de acordo até o fim do ano. Além disso, com a campanha eleitoral para a presidência dos Estados Unidos começando, negociadores vêem a sensibilidade política frear qualquer acordo até 2008.

Depois de acusações recíprocas, Amorim, Schwab e Mandelson partiram separadamente para Genebra, onde conversarão hoje com o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, e países membros. Nenhum quer ser acusado do fiasco que parece inevitável. As chances da negociação global ser concluída até 2009 parecem mínimas, tal o tamanho da divergência entre os principais atores da discussão.

Os mediadores agrícola e de produtos industriais colocarão seus textos de esboço de acordos na mesa nos próximos dias, na OMC, com remotas chances de um consenso entre os países. Cumprindo seu papel, Lamy avalia que a negociação pode prosseguir.

A negociação em Potsdam começou na terça-feira e estava prevista para continuar até sábado ou domingo, mas a situação azedou na quarta-feira à noite num jantar e chegou ao colapso num almoço ontem entre os ministros, com acusações recíprocas de rigidez e inflexibilidade.

"Não há equilíbrio, não há lógica no que os EUA e a UE propõem", disse Kamal Nath, notando que a demanda de fórmula com coeficiente 18% para o corte de tarifas industriais provocaria uma redução de 58% nas tarifas. Em comparação, os países industrializados nunca cortaram suas tarifas em mais de 40% numa rodada, e agora só cortariam em 25%.

"É um péssimo dia para o sistema multilateral de comércio, oportunidades históricas foram perdidas", disse a comissária agrícola da UE, Mariann Fischer Boel, quase colocando a rodada de vez no caixão. A americana Schwab insistiu que o Brasil e a Índia simplesmente não ofereciam fluxo novo de comércio e assim não dava para fechar um acordo.

"Teríamos ficado mais tempo para negociar, mas em certo ponto você tem que compreender que não é todo mundo que tem a mesma intenção e aí você abandona", disse ela. "Se apenas um lado está oferecendo, é duro chegar a um acordo." O secretário de Agricultura americano, Mike Johanns, foi mais duro nas críticas ao Brasil e à Índia. "Não houve mudança na posição de dois anos atrás. Fizemos esforços e eles só embolsaram."

Já para o Brasil, ocorreu o "Cancún 2", uma referência à fracassada reunião ministerial na cidade mexicana, onde EUA e UE se uniram para cobrar muito das nações em desenvolvimento em troca de ofertas menores. Além de oferecerem pouco, os EUA ainda pediram que fosse mantida a "cláusula de paz", mecanismo pelo qual ficariam juridicamente protegidos de serem denunciados devido aos subsídios, na OMC, algo que nenhum outro país aceita, segundo o Brasil. Além disso, a UE quer manter salvaguarda especial, pela qual impõe taxa adicional para proteger seu mercado de importações quando o preço baixa. Para o Brasil e Índia, a desproporção era enorme.

Segundo um negociador europeu, o Brasil e a Índia teriam indicado que seriam flexíveis na área industrial, aceitando coeficiente 25 na fórmula, mas com um número tal de demandas de reciprocidade na área agrícola que Bruxelas considerou tudo "inaceitável".

As condições foram para que as tarifas agrícolas mais altas tivessem corte de 75%, em vez dos 70% admitidos pela UE, e que os produtos sensíveis (protegidos de corte maior) fossem limitados a 1%, e que esses só tivessem corte menor de 30% em relação à redução normal dos outros produtos - a UE quer 70% de corte a menos. Ocorre que os EUA e a UE já tinham chegado a um acordo informal para deixar os sensíveis entre 4% a 5%.

Peter Mandelson disse que a UE ainda estava pronta a melhorar oferta, mas que não teve chance de fazer isso devido à posição dos brasileiros e indianos.