Título: Amorim diz que EUA e UE "se acertaram antes"
Autor: Moreira, Assis
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2007, Brasil, p. A4

O ato final do fiasco de Potsdam, que pode ser o último prego no caixão da Rodada Doha, começou a ser esboçado no jantar dos ministros na quarta-feira à noite, em um restaurante chamado simbolicamente de "O Teatro", e acabou no almoço, ontem, no histórico hotel Cecilienhof, o mesmo aonde os vencedores da Segunda Guerra Mundial decidiram o futuro da Alemanha.

Celso Amorim chegou a mencionar uma peça de Luigi Pirandello, "Assim é se lhe parece", mas demonstra segurança de que americanos e europeus fizeram um acordo entre eles, como na também fracassada conferência ministerial de Cancún (México), para acomodar suas posições e cobrar muito dos países em desenvolvimento.

Quando Peter Mandelson, comissário europeu de Comércio, quis preparar um cenário de "fingimento" para embalar o fiasco em outros termos, o Brasil e a Índia se recusaram e foram dar uma entrevista coletiva, relata Amorim.

Ambos, a princípio, usaram a diplomacia para jogar a culpa nos Estados Unidos e na União Européia. Em seguida, foi a vez de Mandelson e da comissária européia de Agricultura, Mariann Fischer Boel, acusarem o Brasil e a Índia. Três minutos depois de saírem da sala, a representante comercial americana, Susan Schwab, e o secretário de Agricultura, Mike Johanns, entraram para alvejar ainda mais duramente os dois países.

Amorim, então, recebeu em sua suíte os jornalistas brasileiros para um longo desabafo. "Essa é a história real do que se passou, não há uma ênfase para mudar a história", disse. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O começo do embate

"A discussão começou sobre agricultura. As propostas foram insatisfatórias, muito longe do que o G-20 quer. Os últimos gastos total de subsídios agrícolas que mais distorcem o comércio dos EUA foram de US$ 11 bilhões e eles estavam falando em [aceitar limite] US$ 17 bilhões. Aqui foi Cancún ato 2. Eles [EUA e UE] combinaram antes, tinham uma zona de conforto mutuamente aceita que envolvia cortes muito pequenos em subsídios, como querem os EUA, e muito pequenos em acesso ao mercado, como quer a UE. Eu vim aqui para ficar até domingo. Mas eles não. Eles vieram com o acordo deles. (...) Os europeus ficaram muito preocupados quando insistimos que tinha de haver cortes para produtos sensíveis, e só depois discutir a compensação através de cotas. Foi quando eles disseram que estávamos mudando a trave do gol. Não houve mudança nenhuma. Eles é que sempre puseram ênfase no que bem entenderam. (...) Queriam resolver tudo com cotas e aí provavelmente seria uma maneira de satisfazer os EUA, ainda que parcialmente, e a troca era uma redução pequena de subsídios agrícolas. Então, sem a menor dúvida, tudo isso foi acertado [entre EUA e UE]."

Jogada de Mandelson

"Primeiro, eles [EUA e UE] queriam começar a conversa por Nama - os produtos industriais. Mandelson, com aquele ar de inocente, disse que só para variar dessa vez poderiam começar com Nama. Tive que parar isso, disse que o centro da rodada é agricultura. Concordamos em fazer alguma coisa em Nama, mas o que vai definir o nível de ambição da rodada é agricultura e se tiver de selecionar um item é o total de subsídios que distorcem o comércio. Então, ele desistiu, a jogada não colou. No fundo, no fundo, a tática foi a mesma: foi ficar num joguinho lento entre as outras coisas, passar os assuntos e quando chegaram em Nama viram que o grau de concessão que queriam não era possível. Eles chegaram a falar em coeficiente 20, mas buscando equivalência com 18, que significa cortar em 58% as tarifas consolidadas. Obviamente isso era muito distante do que tinha sido indicado em qualquer momento para eles. Eu acho agora que eles [EUA e UE] fizeram uma jogada. Acharam que queríamos a rodada a qualquer preço e que íamos ceder. E se necessário, que nós íamos isolar os indianos.

Do jantar ao almoço

"Tivemos uma conversa muito difícil, muito dura, no jantar, na quarta-feira. Eles queriam dizer que a rodada parou por causa de produtos industriais. Mas a posição da Índia foi muito de acordo conosco, não houve nenhuma quebra de posição, foi absolutamente correta em todos os setores. Eu ainda estava acreditando que era possível [avançar], para falar a verdade. Aí é que entra a história da mentira [dos americanos e dos europeus de que o Brasil e Índia é que teriam posto fim à negociação]. Tanto que no jantar propus continuar a discussão, no dia seguinte, com vários assuntos - serviços, regras, indicações geográficas. Essa foi uma reunião normal, num clima normal, com as divergências que ocorrem. Na hora que Mandelson foi fazer o sumário da reunião e plano do trabalho, achei um pouco estranho, porque eu achava que a gente ia continuar. Achei estranho quando ele falou que tínhamos que resolver se chamávamos o Lamy [diretor-geral da OMC], o ministro japonês, quantos dias iríamos ficar aqui. E perguntei se ele estava preparando uma aterrisagem suave para o fracasso e que isso me surpreendia à luz da conversa que tínhamos tido no jantar, onde as indicações podiam ter sido melhores de um lado e do outro, mas dava para tentar uma conversa esta tarde. Ele respondeu que a gente ia conversar sobre isso na hora do almoço. Na hora do almoço, Estados Unidos e União Européia disseram que era inútil continuar qualquer negociação. Bom, eu soube depois que eles (americanos e europeus) se reuniram à noite e certamente devem ter chegado à conclusão de que não valia a pena (continuar). É direito deles. O que não é direito deles é mentir, jogar com isso."

"É mentira, é mentira"

Repórter: Mas a Susan Schwab me disse que vocês já tinham reserva para partir hoje.

Amorim: É mentira, mentira. Não abandonamos fisicamente (a negociação) e tínhamos reserva para sábado e domingo. No almoço começou um ataque frontal à Nama...

Repórter: De quem?

Amorim: Dos dois. O Mandelson conduziu, mas já tinha feito o acordo com ela [Susan Schwab]. Isso é óbvio. É a mesma coisa de Cancún, só que em outras bases. No fundo, no fundo eles queriam dizer que eu não aceitaria negociação nenhuma, o que não era verdade. O fato é que eles não podiam baixar [subsídios e tarifas]. (...) Você sabe quanto representa em pontos percentuais tarifários coeficiente 30 e coeficiente 20 para setor do automóveis, um setor sensível? A tarifa desce de 35% para 25% ou de 35% para 23%. Você pode imaginar que isso seja uma razão para quebrar a rodada? Agora, para o Brasil era importante porque protege mais tarifas de cortes maiores.

"Eles enrijeceram"

"Os americanos falaram US$ 17 bilhões [para limite no total de subsídios agrícolas que distorcem o comércio]. Talvez pudessem baixar um pouquinho, para US$ 16 bilhões ou 15,9 bilhões, se a gente fala como vendedor de roupa velha. Porque eu ouvi um europeu dizer que não podia ir além disso, porque senão a UE tinha que fazer mais em acesso ao mercados e ele dizia que não podia fazer isso. (...) Não teve nenhum aceno de que poderiam eliminar essa salvaguarda, nem no final do período de implementação do acordo. Não houve nenhum aceno de que as cotas de carne pudessem chegar a um nível razoável, de corte de produtos sensíveis, de enorme interesse do Brasil. E da parte americana, não houve nenhum aceno de descida do total de subsídios que distorcem o comércio. Pelo contrário, houve enrijecimento em produtos do nosso interesse quando se tratava de tetos nas caixas amarela e azul (de subsídios). Eu não poderia aceitar um teto de subsídios para algodão que fosse maior do que os painéis da OMC consideraram que causaram prejuízo sério para o Brasil. (...) Eu achava que era difícil [um acordo], mas era possível.

Alívio para a UE

Repórter: Por que vocês se reuniram à tarde, então?

Amorim: Boa pergunta. Na realidade era para dar um fingimento, mas eu não quis participar de fingimento.

Repórter: Então o sr. não foi?

Amorim: Fui, mas não serviu para nada. Eu disse a ele [Mandelson] isso que eu disse aqui a vocês. Só não usei a palavra mentira, porque assim face a face é meio duro. Ele disse que o Brasil e a Índia, ao convocarem uma entrevista de imprensa e anunciarem sua partida, impediram um avanço da reunião. Eu disse que não era verdade, porque eles já haviam dito que era inútil continuar. Ela, a Susan Schwab, não me desmentiu...

Repórter: Foi ela quem falou que era inútil?

Amorim: Ambos. (...) Já participei de milhão de reuniões, quando se quer continuar, se vem no quarto, bate na porta. Eles não queriam. Na minha avaliação foi um alívio para a União Européia porque ela está com dificuldades com seus países-membros. E os EUA tinham um limite óbvio [nos subsídios].

Repórter Você chegou a mencionar essa coisa de acordo entre eles?

Amorim: Eu falei, mas eles admitiram em Cancún alguma vez? Não posso dizer que tenham acertado tudo, nos menores detalhes. Havia uma zona de aterrisagem definida [para um acordo], só que o aeroporto deles estava fora de nosso radar.

"Acabou? Não sei"

Repórter: Por que eles usaram uma expressão meio pesada para advertir quem quiser usar isso como divisão Norte-Sul?

Amorim: Divisão Norte-Sul eu não sei, mas de qualquer maneira eles fizeram um acordo que dava conforto mútuo para eles, e para nós...

Repórter Por que o Mandelson convocou reunião do G-4 aqui, se era para isso?

Amorim: Gente, sempre tem esperança, porque sempre foi assim. A gente abaixa a cabeça e diz: 'é isso mesmo doutor, me dá licença e desculpe qualquer coisa'. Sempre foi assim. Vai desculpando. É como era. Desta vez não foi.

Repórter: E agora, ministro?

Amorim: Agora eles pegaram dois países que representam efetivamente o mundo em desenvolvimento de maneira correta, e não apenas seus próprios interesses, e a coisa foi diferente.

Repórter: E a partir de agora?

Amorim: Não sei, não fiz todas as reflexões possíveis. Mas eu não poderia de jeito nenhum fazer um acordo que eu considerasse, eu próprio, traição aos interesses da indústria brasileira, uma traição ao Mercosul, uma traição aos países do G-20 que confiaram na gente, uma traição a todos esses países que participaram das reuniões do G-20. Mesmo que tivesse um produto meu lá se beneficiando, o que não foi o caso, diga-se de passagem.

Repórter: Mas o sr. mesmo falou que era o fim (da rodada)...

Amorim: Que era o fim, eu nunca falei.

Repórter: Se os quatro não conseguem se entender, como é que vão conseguir se entender com mais 146 países em Genebra? A análise fria de quem não é negociador é de que acabou...

Repórter: Acabou, ministro, o sr. sabe que acabou...

Amorim: Não sei, não sei... Todo mundo vai para casa e vai pensar, espero que eles pensem também, que os países em desenvolvimento têm suas posições. Isso [o fiasco] já aconteceu uma vez, levou tempo para recuperar, quase um ano, mas desta vez não sei. Mas desta vez as diferenças são muito menores. Para baixar [os subsídios americanos] de US$ 17 bilhões para os números do G-20 não é uma diferença brutal.