Título: O "não-acordo" na Rodada Doha
Autor: Nassar, André M.
Fonte: Valor Econômico, 22/06/2007, Opinião, p. A18

Até ontem pela manhã, a pergunta de um milhão de dólares da semana era se os ministros do G-4 (Brasil, Estados Unidos, Índia e União Européia) encontrariam o consenso que criaria as condições necessárias para viabilizar um acordo na Rodada Doha da OMC. O milhão de dólares agora vai para quem explicar as razões que levaram ao fracasso nos entendimentos entre os integrantes do grupo.

A minha aposta era de que o "não acordo" teria como estopim as flexibilidades para países em desenvolvimento, tema de central interesse para os indianos. Não foi esse o estopim do desfecho de ontem, mas o desequilíbrio entre Brasil, de um lado, e Estados Unidos e União Européia, de outro, ainda tem muito a ver com a confortável situação onde se encontravam os indianos.

Acordos internacionais estão recheados de casos e o agrícola, da Rodada Uruguai, é um exemplo de que o consenso, construído de forma equilibrada, só ocorre quando todos os jogadores encontram algum ganho. Dado que os interesses ofensivos (que querem a liberalização) chocam com os defensivos (que buscam proteção), o equilíbrio converge para os ganhos defensivos. Intuitivamente, sabemos que é mais fácil vender para os grupos representados um não-ganho do que uma perda. Assim, evitar a perda passa a ser o objetivo dos negociadores.

Esse era o contexto que envolvia as reuniões do G-4. Americanos lutando fervorosamente para não trazer más notícias para seus produtores de soja, algodão e arroz. Afinal, para que abrir mão de subsídios na casa do bilhão quando seus pobres concorrentes da América do Sul sequer sabem o estrago que o tal bilhão produz no mercado mundial? Pasmem: sabe qual era a posição do setor agrícola brasileiro? Reduzir o subsídio da soja de US$ 3,6 bilhões para US$ 1,5 bilhão. A mim, soa até imoral da parte dos americanos lutar contra isso.

Os europeus, não menos timidamente, também perderam a noção da realidade: a obsessão era por outro produto - carnes, ao invés de grãos -, mas o casuísmo é gritante. Absolutamente, todas as propostas européias sobre corte de tarifas e concessão em cotas foram feitas para manter protegidos os mercados de carne bovina de Inglaterra e Irlanda e carne de frango de França e Holanda. Um só número para deixar claro o casuísmo do velho mundo: a Europa importa apenas o equivalente a 5% do seu mercado em cada produto e não queria abrir mais do que 1,5% na maior rodada multilateral de comércio da história.

Do lado das flexibilidades para países em desenvolvimento, a Índia era o porta-voz da criação das salvaguardas que, tecnicamente, são uma proteção adicional à tarifa regular, e produtos especiais, conceito novo para os 60 anos do sistema Gatt-OMC, que isenta de redução tarifária setores estratégicos de países em desenvolvimento. Só que, na cabeça dos indianos, os setores estratégicos eram regra, não a exceção.

Estrategicamente, Brasil, EUA e UE já haviam percebido que uma regra básica em negociação tinha sido quebrada no caso desses temas: não se entrega para um dos jogadores seu interesse principal prematuramente porque ele perde a motivação de seguir negociando. Os indianos e chineses, tendo por trás um grupo grande de países em desenvolvimento e apoio de diversas ONGs, já haviam conseguido, sobretudo nos produtos especiais, o que precisavam no Acordo Quadro de julho de 2004 e na Declaração de Hong Kong de dezembro de 2005.

Desde o início das negociações de Doha, os indianos têm se mostrado desinteressados em um novo acordo agrícola que levasse a redução nas suas tarifas e os obrigasse a iniciar um processo, há anos adiado, de reforma nas suas políticas agrícolas. Políticas que lembram as brasileiras dos anos 70 e hoje sepultadas por aqui. Já tendo obtido o que precisavam nas flexibilidades, do alto do seu berço esplêndido, adotaram a postura do "pegue ou deixe". EUA e UE, cientes que os indianos não tinham incentivo algum para seguir negociando esse tema, decidiram mudar de estratégia.

-------------------------------------------------------------------------------- A Europa importa apenas o equivalente a 5% do seu mercado em cada produto e não queria abrir mais do que 1,5% na rodada --------------------------------------------------------------------------------

E o Brasil? Por insistência do equilíbrio europeu França-Alemanha, o Brasil vinha penando no tema da abertura dos setores industriais. Assim como os "companheiros" do G-4, o governo brasileiro sabia que seus constituintes percebiam perdas associadas ao sucesso desta rodada. A dinâmica é a mesma: é mais fácil vender um não-ganho do que uma perda.

A mudança fundamental no processo negociador, que pegou o Brasil desprevenido, aconteceu quando os americanos se juntaram aos europeus, buscando o equilíbrio fora da negociação agrícola. Sendo pressionados pelo Brasil a fazer concessões em subsídios e acesso a mercados, e cientes de que os indianos encontravam-se em "berço esplêndido", EUA e UE escolheram o setor industrial brasileiro como elemento de equilíbrio. Nesse momento, o equilíbrio defensivo que se desenhava se rompeu. E se podemos atribuir ao governo brasileiro um escorregão em sua estratégia, esse erro se deu pela timidez frente às exigências da Índia no tema das flexibilidades.

Montando o quebra-cabeça. O esforço dos quatro negociadores tinha razão de ser, sobretudo porque a obtenção de um acordo faria muito bem ao sistema multilateral e ao comércio agrícola. Os ministros do G-4 estavam caminhando sobre a tênue linha que separava dois tipos de acordo: um acordo mínimo, realista e pouco ambicioso, almejado pelo governo brasileiro e não necessariamente comprável pelo agronegócio brasileiro; e o "não-acordo", que era a opção veladamente defendida por grupo considerável de países em desenvolvimento e, após o desfecho de ontem, pelos dois grandes.

O governo brasileiro já tinha fincado pé na linha do acordo mínimo. Vale lembrar que quem faz concessões é o governo, e ao setor privado cabe o papel de prover suporte técnico. No entanto, o setor privado é capacitado o suficiente para compreender a relevância de um acordo apenas realista.

O governo brasileiro, que representa o país com o maior saldo agrícola do mundo, tem agora que montar dois quebra-cabeças. O primeiro é reconhecer que os países membros querem uma OMC circunscrita a um órgão de solução de controvérsias e fazer uso dele nos temas sistêmicos da agricultura. Esse é o único caminho para tratar dos subsídios domésticos que distorcem o comércio.

O segundo é a busca por uma maior inserção internacional do agronegócio por caminhos não multilaterais. Sem dúvida, as negociações bilaterais serão a nova ordem do dia e, com elas, a necessidade do Brasil ir mais fundo na abertura de sua economia.

André Meloni Nassar é presidente interino do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).